Um jornal como item, ou no mínimo personagem, literário. Um mesmo jornal presente, recorrente, em um livro de contos. O jornal existe. É o Correio Litorâneo, título do livro que venceu o Prêmio Sesc de Literatura de 2006 na categoria contos. O dono da idéia, autor do livro, primeiro lugar no concurso, chama-se Nereu Afonso da Silva.
A estratégia de Nereu Afonso da Silva foi inserir o jornal Correio Litorâneo como elemento, circunstância, personagem literário enfim em meio aos contos. No texto O eco da piscina, é o jornal que informa: “aquela história que saiu ontem no Correio Litorâneo, a história do rico estrangeiro que, seduzido pelo efeito do eco produzido pelas paredes de uma piscina coberta, comprou tudo, demoliu tijolos e azulejos, transportou-os a seu país para lá reconstruir com os mesmos tijolos e azulejos a mesma piscina”.
O jornal Correio Litorâneo, artifício literário do livro de Nereu Afonso da Silva, funciona como qualquer impresso da realidade. Comunica aos leitores acontecimentos. Ações. Ocorrências. E o fato de o autor ter optado por um jornal como item literário justifica a linguagem utilizada em todo o livro. Os jornais — todos sabemos, todos sabem — oferecem aos leitores textos tidos como enxutos, diretos, de fácil compreensão. Assim se dá nos diários da realidade. Assim se dá nas páginas de Correio Litorâneo.
Falar de alguém que até poucas horas atrás vivia bem e que, agora, por uma dessas fatalidades de carro batido em curva de estrada, encontra-se em um leito de pronto-socorro, entubado pelo nariz, pela boca, pelo ânus, agulhado na veia do braço, esfolado, sedado, chegando pouco a pouco à extremidade de sua existência, falar de alguém nesse cenário é tarefa arriscada, destinada ao fracasso, até mesmo para o mais delicado dos tatos.
Para quem fica haverá o enterro amanhã e talvez uma missa requerida pela reduzida família ou por um ou outro colega. Depois cada um voltará para sua casa e certamente fabricará sua própria receita de luto: sozinho no chuveiro, à mesa com as crianças, no ônibus ou no elevador que levam ao trabalho, às quartas-feiras ou aos domingos. Pouco importa. O que fato é que alguns dos conhecidos, que estão vivos, convidarão o morto para um passeio mais ou menos longo, mais ou menos freqüente, mais ou menos opaco em suas memórias.
Os dois parágrafos transcritos anteriormente compõem o ponto alto, emocionado, emocionante, de Correio Litorâneo e iniciam o conto Migravit ad Dominum. Referência possivelmente recortada da realidade, recriada literariamente. E assim o autor também opera nos outros sete contos. Mortes. Golpes. Acasos. Azares. Sortes. E outras cotidianidades reais adquiriram espessura artística a partir de verve e bossa deste escritor paulista formado em filosofia, também ator, um dos Doutores da Alegria, hoje a transitar em território europeu, França em particular.