O olhar dourado do abismo — único livro de contos da paraense Olga Savary, publicado originalmente em 1997 — traz 19 textos, entre curtos, médios e longos, com dedicatórias em cada um deles. O protagonismo feminino é demarcando por um território erótico tão negado às mulheres ao longo de nossa história. O teórico holandês Johan Huizinga escreveu sobre a importância do jogo como condição humana em várias esferas da sociedade. No Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes, o jogo vem do latim jocu-, “gracejo, zombaria”. Savary produz esse jogo através da potência do literário com ricas imagens e metáforas, aproximando-se da poesia. Não seguindo a estrutura do conto tradicional, com início, meio e fim, vale-se do humor e da ironia antropofágica em que toda semântica da caça e do caçador aparece.
No conto de abertura, King Kong x Mona Lisa, vemos um personagem primitivo, arquétipo da violência e dominação do homem, no cinema hollywoodiano, sendo contestado pela força reflexiva da mulher, entre o mais primordial, mas, ao mesmo tempo afável com os requintes de sedução da Mona Lisa, obra de arte mais elevada, revelando todas as contradições da personagem, que, com espanto, vê nele seu espelho e desejo pelo sexo mais visceral, rascante e animalesco. O embrutecimento dos “guinchos, gaitadas, pios, rugidos, uivos, assobios, risadas, toda a algaravia por ele usada para a sedução”. A natureza, com sua flora e sua fauna, mais primitiva e exuberante, até com elementos feéricos e frondosos, evita a simplicidade de um exotismo, pois admite o cosmopolitismo cultural, marca da antropofagia modernista. Isso se apresenta em seus contos, com a combinação de elementos da tradição indígena, africana, americana, italiana, francesa, holandesa, japonesa, numa comedoria pantagruélica e carnavalesca, que hibridiza culturas e artes em geral.
A narrativa homônima do título do livro se vale do pensamento, voltando-se para o íntimo das personagens, com sensações de efeitos sinestésicos sendo enumeradas. Aliás, a técnica das enumerações é uma constante nesta obra no sentido de dar intensidade ao que se quer dizer. O próprio jogo do erotismo se faz presente até atingir aquele ponto orgástico em que a água e o fogo, dois elementos fortes como signos da representação de Eros. São crescentes paradoxos e oxímoros na representação da face acesa do desejo, o concreto e o abstrato, a sensação e o pensar, o telúrico e o celeste, o primitivo e o refinado, o pop e o erudito, numa ambiguidade que caracteriza mesmo o prazer em seus aspectos que o aproximam do literário, em seus mecanismos de ocultamento e revelação. Há nesse conto um pêndulo, uma oscilação assim como nos outros, entre o mais prosaico e o mais poético. O olhar dourado do abismo é um olhar erotizado que busca o mistério, retornando ciclicamente em suas narrativas. O olhar aqui é o próprio órgão sexual prestes a realizar seu intento erótico.
Ditos e expressões populares
Outras formas se descortinam, como a mistura entre a oralidade e a norma culta, com ditos e expressões populares, assim como citações mais ligadas ao texto escrito de outros escritores, artistas e pensadores, também, num rito antropofágico textual. Em O ventre da baleia, entre a Bíblia e o mito, usa as repetições e o ritmo da poesia para metaforizar a ausência do ser amado e o acúmulo de poeira que envolve na casa o corpo da amada. Além da oralidade dos ditos populares, temos o coloquialismo da expressão mais informal “pra”, representando a fala, pois, seu livro é dialógico, entre os amantes, entre a narradora e o leitor, numa relação simbiótica, que lembra o teatro.
O conto Cunhã e Apiaua inverte os papéis masculinos e femininos, como num espelho invertido, com expressões do tupi que indicam “fêmea e macho”, na sua dimensão menos ligada à família tradicional, de homem e mulher. Em certos momentos, nos contos, não temos uma história, mas impressões e reflexões da narradora, no sentido mais intimista, expressas como numa fotografia, um instantâneo, como em Virginia Woolf e, aqui, no Brasil, Clarice Lispector, o “instante já”, o “agora”. Olga Savary participa desta estirpe rara de escritoras que souberam trabalhar com a temática erótica como Gilka Machado, Adélia Prado, Hilda Hilst, entre outras, para fugirem do jugo masculino e do poder patriarcal que sujeitaram as mulheres, transformando-as em objetos e corpos dominados. Em Savary, a voz da mulher ganha corpo de desejo, sem deixar de lado o poder reflexivo sobre ele. Para isso, viola as regras e interditos com a recriação literária da cultura da antropofagia cultural em seu aspecto erótico ao mostrar que as escritoras, sim, podem ter o conhecimento em vários campos do saber.
Em Curare (veneno de índio usado na ponta das flechas, em tupi), a mistura das regiões, das danças e festas populares, de várias tradições, com o recurso ao mito, num jogo com as palavras que se entrelaçam eroticamente. Savary realiza uma mestiçagem racial e cultural no corpo do texto, em sua tessitura verbal, como podemos ver em Macunaíma, de Mário de Andrade. Os jogos do prazer (também com sua combinação), estão nos animais, unindo também o vegetal, e o ser humano, esse com sua consciência, em que as lendas e folclores diversos são explorados, como o do boto e a da história de Pindorama, o primeiro nome do Brasil dado por indígenas de certas regiões, que etimologicamente, segundo Teodoro Sampaio, seria “região ou o país das palmeiras”. Olga Savary nos conta: “Nada mais belo que o homem que sabe honrar uma mulher, o macho que honra a sua fêmea. E, como é índio, chama-o Xingu. Que sabe honrá-la, Xingu, em Pindorama”. Vale ressaltar que no Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade, temos a referência ao “Matriarcado de Pindorama”.
Riqueza semântica
Não a cauda de sereia nos mostra o diálogo dramático com as palavras “ele” e “ela” no início de cada conversa, em que temos o embate entre o corpo e a alma, o desejo e o intelecto, e utilizando a ironia, Savary recorre a um termo monetário para se falar da posse do outro, opondo a ela o elo tão importante entre o corpóreo e o divino que faz do ser algo além do símbolo da “pedra”: “Com essa joia do pensamento ocidental, precisa e contundente, fui comprada”. Dessa forma, encontramos mais um de seus contrastes: a visão oriental, que admira, e o mundo do Ocidente, que, em certas circunstâncias, critica. O seu estado de coisificação deve ser ultrapassado pela transcendência, embora se tenha o fascínio pela sensualidade e rudeza, com simulacros e sinonímias entre as palavras e seus toques diferenciados, enaltecendo as várias vozes, perspectivas e olhares sobre o prazer. Pois as antinomias, da mesma forma, aparecem, para rivalizar esses simulacros linguísticos, em que diferenças entre os sexos, nas suas dimensões anatômicas, sensórias, sentimentais e mentais nos são apresentadas numa riqueza semântica surpreendente. Com domínio das figuras de linguagem, Olga Savary satiriza os chavões e clichês do amor, pois a paixão, como no título de seu livro, tem de causar a perplexidade e o espanto. Os homens são descritos até como imaturos e incultos, mas com inteligência, para sua compreensão nos seus contos, tentando entender esse ponto de vista feminino.
À guisa de conclusão, vamos ver os dois contos mais longos do livro, Camanau e Um pássaro na mão, com suas contradições barrocas. No primeiro, se questiona o casamento e seu exclusivismo, tendo a mulher a liberdade de ter seus amantes. O título em tupi da narrativa significa “caça” e revela a relação abusiva psicológica do homem na relação erótica, em que há um “teatro”, o mundo das aparências e, de forma oposta, aquilo que se deseja realmente. A mulher não sendo objeto, propriedade, procura sua liberdade, tendo a posse sobre seu próprio corpo e desejo, e lista uma série de nomes de amantes num tom de diálogo aberto. Com forte temperamento e personalidade, a mulher mostra a sua face, buscando a igualdade de direitos. Há mudanças de ritmo nesse conto, indo do cerebral, com suas divagações, a uma descrição cotidiana de uma festa. Mesmo assim, o ideal da personagem seria entre Tarzan e King Kong, o Yêgbar, “viril e terno”. Os homens, sem distinção de idade, raça ou cor são homens. A liberdade é escolha e se direciona ao olhar do abismo. O segundo, dividido em sete partes, demonstra o cultivo do nacional e a admiração pelo estrangeiro. As chaves estão nas próprias palavras de Savary, que nos despista ao longo do conto, tendo nós, leitores, a incumbência de descobrirmos seus jogos internos a partir do texto e de seu contexto, como a repetição da conjunção “mas”, o onirismo marítimo, as imagens, metáforas e referências cinematográficas. Se o erotismo se intercambia com a morte, nesse conto a ideia de continuidade do prazer do texto faz com que a história drible essa mesma morte e o silêncio, pois a linguagem ainda reverbera após a leitura como uma deglutição antropofágica requer.