Jogo e risco

"Poesia reunida" perpassa obra poética da paulista Eunice Arruda
Eunice Arruda, autora de “Poesia reunida” Foto: Juan Esteves
01/10/2012

Poesia reunida, de Eunice Arruda, é uma seleção de poemas que perpassa toda obra da autora, produzida em mais de cinco décadas. Seu projeto estético vem se configurando desde os anos 1960, a partir de um trabalho permanentemente em construção. O livro se estrutura dentro dessa perspectiva, a começar pela organização gráfica da capa, na qual “reproduz-se, em destaque, fotografia de Duílio Ramos”. A foto é de uma parede, com a superposição de tijolos, cujas fileiras se alternam entre claro e escuro, em simetria. Os tijolos são ligados por uma camada fina de cimento, como cada livro e cada poema estão cimentados, entre si, por cuidadosos fios de sentidos, nos quais diferentes ou mesmo contraditórios aspectos temáticos entrelaçam-se, garantindo, se não coerência plena, pelo menos a indispensável unicidade de proposição.

No poema Inspiração, o sujeito se manifesta relacionando o caráter construtivo do fazer poético e sua relação com esse “eu” a se constituir aos pedaços na sua própria escrita. “Construo o poema// peda-/ço por/ pedaço// Construo um/ pedaço de/ mim/ em cada poema.” Ainda no mesmo campo semântico, o poema Alicerce tenta escrever fragmentos dessa história: “O ciclo se cumpre:/ é tempo de retornar// Minha busca é uma lanterna/ clareando porões/ cavando o chão em busca do tesouro. Onde/ ficou? A casa não caiu ainda//… Minha casa/ — alicerces de pedra da minha infância — / eu não sei mais voltar”.

Claro e escuro, luz e sombra, cotidiano e sonho, prazer e dor, vida e morte são oposições que, paradoxalmente, negociam espaço, nessa construção de rígida parede, porém permeável pela porosidade do barro de seus tijolos. Os alicerces dessa construção parecem mais sólidos, a pedra e seus símbolos indicam esses caminhos, talvez plantados na infância desse sujeito. Mas o fato de não saber mais voltar cria um desvio, uma ruptura com tantas certezas deixada para trás.

Estabelece-se desde o primeiro livro uma economia na qual a escolha de cada palavra e de cada silêncio é de fundamental importância para se atingir uma expressividade máxima com o mínimo de recursos. São poemas, portanto, predominantemente curtos, o que não significa facilidade de produção ou de leitura. A preocupação com a síntese não se limita apenas à questão formal, está ligada à construção de sentidos através da organização de imagens que buscam visibilidade e concretude para uma subjetividade latente. “No escuro do/ áspero muro/ meus dedos sangram/ o duro silêncio/— a pedra/ teu rosto / em minha testa.”

Em Há estações (haicais — 2003) e Olhar (haicais — 2005), por exemplo, isto é bem claro. Dispostos em quatro partes correspondentes às estações do ano, os poemas de três versos entrelaçam aspectos de uma natureza física com a afetividade de um sujeito lírico presente. Mais que as situações concretas que as estações sugerem, entram em jogo suas manifestações simbólicas sugeridas. Primavera: “Manhã de primavera/ Todas as janelas abertas/ perfume entrando”. Provocam-se aí efeitos não apenas causados pela plasticidade das imagens que vão se descortinando, mas outros aspectos sensoriais que entram em cena. Isto anuncia a presença humana e afetivamente envolvida não só pelo olhar observador e contemplativo, mas também por todos os sentidos. “Olhar de menino/ sustentando — leve — no ar/ a bolha de sabão” Ou “Janelas abertas, fico ouvindo o bem-te-vi/ Mas, onde ele está?”.

A seleção é organizada por ordem cronológica correspondente à primeira publicação de cada um de seus livros. Inútil uma leitura comparativa, na busca de um desenvolvimento linear da maturidade poética da autora. É admirável a regularidade do domínio técnico, a qualidade dos poemas e as escolhas dos procedimentos estéticos. Isto indica uma consciência clara de propósitos, desde o primeiro livro e uma vida dedicada cotidianamente à poesia. Apesar de diferentes e sugestivos títulos, nem do ponto de vista temático cada livro parece se distanciar muito. Temas e problemas dos primeiros são retomados nos outros numa gama infinita de abordagens e variações, permitindo, assim, várias possibilidades de leitura. O livro pode ser lido como um todo, de frente para trás, de trás para frente, ao acaso, ou em fragmentos. São daqueles livros que podem pairar deliciosamente na cabeceira para se respirar sua poesia mesmo na correria do dia-a-dia.

Alguns temas são recorrentes, outros nem tanto. Há uma delicadeza e elegância nas abordagens temáticas, o que muitos críticos definem como dicção feminina e outros questionavam como rotulação desnecessária. Os sujeitos líricos de Eunice Arruda não enfatizam, explicitamente, a condição feminina da autora. Sua busca obsessiva se revela no âmbito metalingüístico, na busca da palavra, da forma, do conteúdo poético que melhor aproximem o que precisa ser dito da realização estética. “Esse convívio com as palavras/ esse convívio íntimo com as palavras/ Corro um risco jogo cartas/ …Corro jogo risco a morte.”

O fato de cada livro vir datado parece mera disposição organizacional. O tempo flui para além dos limites conjunturais. O tempo histórico não é o predominante nessa poética, apesar desse aspecto se revelar na trama cotidiana, como poderemos observar em Paisagem: “Helicópteros/ sobrevoam/ os assassinos do dia// Pombas pesadas de símbolos tentam voar”. A experiência urbana da violência comprometendo a paz tão desejada é clara no poema. Um tempo mítico ou no plano do desejo incide sobre o presente, sobre o que pulsa, o que se manifesta sendo, acontecendo. “Nessas noites de junho,/ nessas noites de agosto/ e em outras noites escuras…/ o amor se abre/ em ouro/ me chama/ nessas noites de junho/ nessas noites de chama.” Junho, agosto criam uma falsa precisão de um tempo que avança, para enfatizar o momentâneo instante. Instante: “Lembranças desatam soluços na manhã// Penetram o quarto com o sonho/ e inquietam agora/ a simulada paz/ de café e jornal/ horários e passos/ Depois o sol atravessa a vidraça/ e reintegra o corpo/ acalma o rosto// adia a viagem”. Lembranças abstratas penetram o quarto nos seus elementos mais concretos para se reintegrar ao corpo do poema, acalmar o rosto do sujeito e pairar sem pressa de seguir viagem. Memórias chegam e se vão intrincadas no instante de retomá-las para serem reescritas no presente.

Os poemas do livro Memórias, escritos com base em xilogravuras de Valdir Rocha, lêem as imagens do artista e com elas se envolvem como num abraço de espelhos, alinhavando encontros e desencontros em novas configurações de linguagens. “Em cada espelho/ um rosto/ diferente.” Em cada página, em cada linha, um poema diferente, marcado por traços firmes de subjetividades múltiplas que têm vozes próprias ou que apenas se ausentam em cada tentativa de dizer o indizível. Afinal, “as coisas ardentes/ não dizem o/ nome”. Ou dizem?

Poesia reunida
Eunice Arruda
Pantemporâneo
288 págs.
Eunice Arruda
Nasceu em 1939, em Santa Rita do Passa Quatro (SP). Pós-graduada em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, foi premiada no Concurso de Poesia Pablo Neruda, organizado pela Casa Latino-americana, em Buenos Aires, em 1974. Seus poemas foram publicados em antologias no Uruguai, Colômbia, França e Estados Unidos. É autora de mais de 15 livros.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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