Dividido em três partes, cada uma conduzida por uma perspectiva, Segredos, de Domenico Starnone, é um exercício de alteridade, cômico e detestável. A primeira e mais extensa seção é a narrativa edificante de um homem que alça um discreto sucesso como intelectual ao longo da segunda metade do século 20. Nas divisões posteriores, encontram-se os restos da construção linear do primeiro narrador, Pietro, seus pontos cegos e os efeitos exercidos nas vidas de duas mulheres que o amaram, a filha e uma antiga e paradigmática namorada.
O romance abre com uma interessante definição do amor: “Uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e aos razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra”. Em seguida o relacionamento turbulento com Teresa, que antes fora sua aluna, é sumarizado até que Pietro mencione o pacto estabelecido entre os dois: o compartilhamento dos feitos mais pérfidos que cada um deles guarda dentro de si. Após o término da relação, ele começa construir o seu idílio de intelectual pequeno burguês, consideravelmente diverso da definição de amor da abertura.
A comicidade está na incapacidade do narrador de, justamente, ser capaz de ver alguma coisa que não ele mesmo. É um divertido paradoxo: enquanto o leitor se desconcerta ao encontrar o choque das perspectivas, o narrador-protagonista se centra em si mesmo de tal modo que a história de sua vida trata unicamente dele e dos outros meramente em relação a ele. A impressão é reforçada pelo foco narrativo que sempre volta a Pietro, ainda quando sua filha ou Teresa conduzem a organização do enredo. Por vezes, o delineamento da postura vaidosa soa quase que redundante, mas talvez a vaidade o seja. Portanto, o fator detestável parece resultado estético de uma competente criação de personagem.
Detestável mas ainda assim um pouco cômico, porque a compreensível vontade de se ver como um homem íntegro e honesto exige muitos malabarismos morais. No modo de relatar a sua história, Pietro não economiza em reflexões existenciais e ponderações relativas ao bem e ao mal. Embora não deixem de ser pertinentes, elas nunca culminam na responsabilização por si mesmo e pelas suas ações, porque há um externo maior e determinista. Os devaneios parecem, então, subterfúgios para jamais olhar a impotência de frente e manter uma distância saudável da podridão constituinte de todo e qualquer sujeito. Em certo momento, Teresa afirma que Pietro sempre achava uma causa sociológica para seu sofrimento. É curioso pensar nas convicções desse personagem também sob esse prisma: ele, que quer ser extraordinário e teme ser medíocre, defende uma escola que seja capaz de levar em conta as desigualdades sociais na prática do ensino, sem desrespeitar necessidades distintas.
E no que consiste o sucesso de Pietro? Ele, um jovem professor, escreve um ensaio sobre a situação do ensino que é bem acolhido pelos seus pares. O processo da escrita é minimizado pelo próprio narrador, que usa o diminutivo e outros adjetivos que vão entoando o ritmo cínico de quem se acha esperto por domesticar o curso inesperado da vida. Quando ele começa a ser bem visto por pessoas ilustres e receber os afagos das plateias, o escopo da narrativa se detém na recepção das palavras do personagem, ao passo que o trabalho em si fica limitado a poucas linhas. Na rua, o tom tranquilo seduz o público; em casa, aos olhos das mulheres que o amam, o mesmo tom sinaliza a existência de uma distância instransponível.
Os avanços em sua carreira costumam coincidir com a sensação de que Teresa poderia aparecer, falar do seu segredo e comprometer absolutamente tudo que ele havia conquistado. A imagem da ex-namorada volta tanto para assombrá-lo quanto para provocá-lo a se manter vigilante e se moldar segundo fórmulas que lhe permitam antecipar as reações alheias. A ambivalência da paranoia instiga a pensar na boa dose de vaidade que a sustenta. Afinal quanta energia direcionada a si mesmo não é necessária para considerar que alguém planeja obscuramente arruinar uma vida pelo mero prazer de arruinar?
Bonequinhas russas
No primeiro livro de Starnone publicado no Brasil, Laços, também há o jogo das perspectivas. A primeira parte do romance é composta pelas cartas de Vanda, uma jovem e desesperada esposa escrevendo para o marido que a deixou. Na segunda parte, é a voz do marido, Aldo, que relata a história de sua vida e o reencontro com as cartas, tantos anos depois, quando se depara com o apartamento completamente revirado depois de férias de verão. No romance seguinte, Assombrações, Danielle, um experiente artista que começa a ter de lidar com o esquecimento e a dissolução do prestígio, volta a sua cidade natal para cuidar do neto enquanto a filha e o genro viajam a trabalho. Todas as três divisões do livro são conduzidas pelo olhar de Danielle, na última, no entanto, ao invés de narrativa, se trata do diário e dos esboços de desenhos que o personagem realiza no decorrer do enredo.
Em Segredos, além dos ângulos diferentes, há também essa transformação de uma das perspectivas em um objeto presente em outra parte da história. Nesse caso, o leitor descobre que o relato de Pietro é parte de um e-mail enviado à Teresa, e que o ponto de corte da primeira seção coincide com a decisão dela de interromper a leitura. As transições de olhares e essas brincadeiras são um traço instigante da prosa de Starnone, que deixam a simplicidade do andamento reincidente dos seus livros — uma narrativa linear cuja alguma sutileza assume o papel de espora para derivar lembranças anteriores e formadoras de seus narradores, alternada com reflexões sobre a vida, as instituições, as regras — com uma forma mais sofisticada e curiosa.
Outro ponto comum dos últimos três romances do autor é o desenvolvimento das marcas que os pais deixam nos filhos. Os três protagonistas são homens, napolitanos, nascidos no pós-guerra e em lares com privações econômicas e culturais. Com diligência, encanto e um pouco de sorte, eles conseguem se inserir com alguma notoriedade em lugares ilustrados e cultos, bem como alçam uma condição financeira mais favorável que a de origem. Os três saem da Nápoles natal em direção às cidades mais ricas do norte do país, e os três, de uma forma ou de outra, guardam lembranças dolorosas da violência do primeiro lar.
As heranças familiares, portanto, reverberam na forma que esses personagens vão se construindo, nas maneiras de se portar em suas respectivas casas e na esfera pública, nas trajetórias distintas que buscam trilhar e nos abismos que sentem crescer entre o lugar de nascença e o que eles vão aos poucos moldando. Há também outra forma para as heranças familiares, a que esses protagonistas, tão carismáticos e prestigiados, deixam aos seus filhos. Embora tenham podido oferecer instrução e conforto material, as proles se tornam disfuncionais e problemáticas.
Não que conhecimento já tenha prevenido alguém de ser um cretino, coisa que Starnone parece sugerir com deboche refinado. O curioso de encontrar os destinos dos filhos dos narradores é uma sugestão um tanto macabra de que a infelicidade é um pouco incontornável. E mais, que a família é um organismo de equilibro delicado e precário, em que abnegação pode se tornar ressentimento e admiração desmedida pode virar inaptidão para se defrontar com insatisfações. Em suma, a família não é branda, e não há como jogar um sujeito no mundo sem antes imprimir nele uma boa dose de dor.