João Wilson Cabral de Simonal, o samba do país doido

Era uma vez um cantor chamado Simonal (o pai do cantor Simoninha, como devem deduzir os leitores de menos de 30 anos). Antes de Tim Maia e Ed Motta, Wilson Simonal foi, provavelmente, o cantor com mais swing já surgido nos palcos brasileiros.
01/11/2004

Se o homem nu é Herzog tornou-se uma questão secundária.
Alberto Dines

O Brasil é um país curioso. Ou melhor, o Brasil não é um país curioso: ele é estranho e, às vezes, sinistro como um padre da Inquisição. E sendo — ou fingindo ser — também um país desmemoriado, eu resolvi contar uma historinha exemplar deste torrão de Savonarolas disfarçados de Madres Teresas de Oh, Calcutá:

Era uma vez um cantor chamado Simonal (o pai do cantor Simoninha, como devem deduzir os leitores de menos de 30 anos). Antes de Tim Maia e Ed Motta, Wilson Simonal foi, provavelmente, o cantor com mais swing já surgido nos palcos brasileiros.

Quando Simonal apareceu, o fino da bossa de Elis e Jair Rodrigues campeava entre aqueles soldados do “prólogo” de Senhora do Destino, a cavalo, em tanques e a pé, na Cinelândia (escrevo especialmente para tentar educar os mais jovens sobre as mais velhas tortuosidades da terra de Vera Cruz).

Simonal tinha uma cara de mulato sonso, com lábios grossos num largo sorriso de malandro capaz de pegar um samba meio sem graça e transformá-lo em qualquer coisa charmosa, “swingada” ao máximo e cariocamente bem-humorada.

Isso foi notado desde a estréia do sambista até a medula de recruta ritmista de caixas de fósforos, destilando som por todos os poros de cantor talvez destinado a se tornar — se o país tivesse deixado — uma expressão pura da alma livre do povo, como diria o direitista Flávio Cavalcanti.

E a carreira de Simonal foi indo muito bem & coisa e tal, até o dia em que ele resolveu cobrar de alguém uma dívida de dinheiro — da maneira errada. Após algumas infrutíferas tentativas de receber a grana emprestada, Simonal pediu a ajuda de dois esbirros (conhecidos dos seus dos tempos do serviço militar obrigatório), os quais foram procurar o “xexeiro”, em nome do cantor. A dupla deu uns tapas no devedor. O rapaz tinha algumas boas amizades, espalhou que havia apanhado, a coisa foi crescendo a partir do zunzum e terminou formando, sinistramente, a seguinte lenda: Wilson Simonal seria um informante da polícia, um delator dos quartéis, um amigo da polícia.

Bem, quem quisesse matar alguém do “showbusiness” em vida — a partir de 1964 — tinha ao seu dispor esta arma: “boatar” que o vizinho dono do cachorro que tinha cagado no seu jardim era um dedo-duro. Pois espalharam isso sobre o Simonal e, naquele clima pós-68, o que aconteceu com ele seguiu curso fatal e inevitável: seus shows foram minguando, ele foi deixando de ser convidado para cantar na TV, os colegas começaram a se afastar do malandro — que até demorou a perceber o vácuo crescente em torno de si.

Quando Wilson Simonal deu por si, estava “queimado” no meio e na mídia, e sua vida, seus motivos e até o seu invejado talento estavam julgados e cancelados no pequeno-grande “tribunal” do disse-me-disse, onde não poderia ir se defender em todas as esquinas, rodas de samba e redações de jornais.

A carreira do cantor mixou, terminou, acabou, foi pro beleléu. Sem direito a defesa. E o pai de Simoninha morreu, amargurado, falido, cantor sem disco, sem boate, sem agenda e precocemente envelhecido pela “caça às bruxas” ao contrário. Deixou apenas os filhos, como herança do seu ouvido excelente, da sua ginga e do seu timing.

Muito bem. Mais ou menos ao tempo em que Simonal se lançava como cantor, o poeta (e conterrâneo) João Cabral era adido cultural do consulado brasileiro em Barcelona, se eu não me engano. Em todo caso, estava num posto na Europa — dentre os muitos que ocupou o aplicado diplomata João Cabral de Melo Neto, funcionário exemplar do Ministério das Relações Exteriores antes, durante e depois do regime militar. João era zeloso o bastante para ficar muito preocupado quando Morte e vida severina fez grande sucesso, encenada pelo Tuca, em 1966. Foi um texto escrito a pedido de Maria Clara Machado — o poeta se apressou a explicar — e, evidentemente, não compareceu à estréia, em Paris, do texto musicado por Chico Buarque de Holanda, o qual João sempre alegou ser um trabalho menor (o poema), etc. E como a “encomenda” de Maria Clara saiu melhor do que o soneto, a dor de cabeça de João — que ele sentiu a vida inteira — só fazia aumentar de cada vez que Morte e vida servia de bandeira para a esquerda, chancelada até pelas posições políticas do autor da música composta especialmente para a peça baseada no “texto menor”.

João Cabral tinha mais do que medo disso — e do seu próprio poema. Durante os chamados “anos de chumbo”, ele temeu, acima de tudo, alguma “mácula” na boa ficha funcional — e todo e qualquer desconfiança que a obra pudesse lhe trazer, enquanto servia o poder militar golpista com o melhor da sua inteligência. Seria receio excessivo num homem de coragem, mas não no espírito cabralino burocrático, responsável pela biografia, politicamente pálida, desse grande poeta que cuidou de se manter estritamente diplomata e cumpridor dos seus deveres funcionais nas embaixadas e nos consulados do Brasil sob as ordens do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco e dos generais Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo.

E até se pode entender isso. O jovem Cabral havia respondido a um inquérito interno, no Ministério — durante o governo de Juscelino — e consta que teria ficado com medo, pelo resto da vida, de se prejudicar na carreira. Parece que o tal processo foi arquivado (ou Cabral foi inocentado, não sei bem). Só sei o que todo mundo sabe: de ficha novamente limpa, João passou a ser funcionário público exemplar — mesmo sabendo que a “exemplaridade”, no caso de um poeta do seu tamanho, se torna imediatamente omissão e, portanto, uma forma torcida de participar e de apoiar.

Alguém já imaginou o diplomata e poeta Pablo Neruda tendo outra atitude que não a de arriscar o pescoço — literalmente — para salvar a candidatura de Salvador Allende, no Chile?

João Cabral de Melo Neto jamais teria apoiado um Allende brasileiro, até porque isso não seria da sua, digamos, tendência ideológica natural no homem nascido no seio de uma aristocrática família pernambucana… além de ser, no final, questão de foro particular, ou da boa prudência cheia de medos (que temos de respeitar, mesmo lamentando o medíocre instinto de autopreservação do nosso poeta-diplomata).

Muito bem. O Brasil é um país de assimetrias terríveis, e eis que eu nunca posso pensar no lírico cerebral de O engenheiro sem ao mesmo tempo recordar que Wilson Simonal teve a sua carreira lentamente destruída pelo patrulhismo ideológico savonarolesco — enquanto o autor de Educação pela pedra, por exemplo, nunca, jamais, em tempo algum chegou a ser cobrado pela rocha do seu coração de fiel integrante do Itamaraty da ditadura. João Cabral de Melo Neto nunca disse um “ai” contra ela. E, principalmente, nunca disse um “não”.

Ou talvez tenha dito, mas para os exilados que foram procurar a sua ajuda (sei de três casos, pelo menos) como adido cultural, cônsul, o escambau. Tais brasileiros foram recebidos pelo conselheiro de lábios cerrados, pelo poeta sem solidariedade política e pelo funcionário público inatacável na sua folha de serviços prestados nas representações diplomáticas do país gerido pelos “revolucionários” de 1964. Dos três casos que nos foram relatados, nenhum pleito fez mover nem um dedo mínimo das mãos magras do autor de Educação pela pedra. Educadamente recebidos, os três conterrâneos do adido foram despachados, após cafezinho e água, para a incerteza da vida dos exilados, lá fora, para além dos jardins dos consulados.

Mesmo agora, eu sei que este artigo irá chocar, talvez, os cabralistas de olhos fechados para a boca chiusa do único eleito, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras (hummm)…

O patropi-patrulhismo de esquerda preferiu não recriminar em nada o superacadêmico, e fingir que o vate era um dos seus , mesmo na sua omissão bem comportada, “esquecida” e evitada como assunto de jornal (eu deverei pagar caro por abordá-lo neste Rascunho livre como uma gaivota). Até morrer, o cantor do Cão sem plumas viveu generosamente cercado da admiração de todos, emplumado das honrarias literárias mais altas (as quais merecia, sem dúvida), sendo que nenhum necrológio do poeta teve o “mau gosto” de extrapolar da carreira poética para comentar a trajetória do diplomata de carreira cumulada pela confiança do regime de exceção que assassinou Vladimir Herzog, nu ou não-nu no corredor do Doi-Codi de São Paulo, antes de ser levado para as salas de torturas do país onde trucidaram e mataram David Capistrano, Rubens Paiva, Manuel Fiel Filho, Fernando Santa Cruz, Iran Pereira, Humberto Câmara e tantos outros (faltará, para sempre, um poema cabralino sobre os desaparecidos no rio sujo, os fantasmas das estradas de injustiça que o cinismo das casernas costuma tentar apagar sob a “pérola” jurídica da “anistia para todos”).

O caminho de Wilson Simonal foi diferente. Sobre a sua cabeça de negro (como diria Paulo Francis), pesou a condenação, tantas vezes sem provas, contra os pobres. Um tribunal invisível se formou, misteriosamente, para julgar o cantor popular, sem necessidade dos autos do processo informado só das testemunhas contra (todas mascaradas, anônimas e acreditadas integralmente). O réu não soube que estava sendo julgado, a sua defesa inexistiu (até porque ninguém estava interessado em ouvi-la) e, ao final do linchamento moral-mortal, um juiz sem rosto pronunciou a sentença irrecorrível: CULPADO.

O Brasil é um país de inocentes e culpados que a justiça cega escolhe nunca aleatoriamente, porém com todos os sentidos dos surdos destituídos de visão mais do que alertas para gritar com toda a força muda da boca de 500 anos de um bebê sem cabeça.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho