Je suis Jailson

Contos demonstram, com simplicidade e acerto, a habilidade de Antônio Mariano na construção das frases
Antônio Mariano, autor de “O dia em que comemos Maria Dulce”
27/05/2016

É comum que se diga que ler é solitário. E que escrever também. Solidão de muitas vozes, que é isso? Se eu fosse um dicionário, diria, e diria mal: Estado ou sensação de desacompanhamento, ainda que em meio à multidão, ainda que no colo de alguém. A solidão é dos grandes temas da Literatura — ela, a morte, o amor, essas coisas, entrelaçadas, tantas formas de contar, tão comuns e ao mesmo tempo únicas em cada vida, em cada momento da vida. García Márquez a tirou de um caroço da Colômbia, ou de um calo de suas pegadas pelo país, e a transformou em umbigo do mundo, contando cem anos dela. Esse número é um pouco só de tempo diante da solidão que soa falsamente infinita, já que humana, e que não sobreviveria a ela própria, no dia em que não sobrar quem a lamente, disseque, exponha. É disso que são feitos os contos d’O dia em que comemos Maria Dulce, de Antônio Mariano.

No conto homônimo ao título: comemos. Muita gente para o que é profundamente solitário, o sofrimento da fome. Maria Dulce não é quem tem fome, ela a sente sendo a comida. Sendo a comida ela nos revela quem é fome. Desamparada, não necessariamente solitária, Maria Dulce. Desamparados os que a devoram no conto. Habilidoso conto. Não estou aqui a sugerir que se inverta ordem nenhuma da obra, mas sugiro sim que se comece a leitura desse livro por esse texto, que concentra bem a habilidade que o escritor exibe no livro todo, habilidade na construção das frases, no encadeamento delas, sempre contando a história, sem muita digressão, sem citações de exibicionismo cultural. No mínimo, como técnica, funciona muito bem porque não faz o leitor escapar das cenas, do pensamento dos personagens, de seus pontos de vista. E os sentimentos são tão mostrados quanto relatados, num equilíbrio difícil de se manter, mas ele consegue.

Uma vez fiquei sozinho com Maria Dulce após os outros irem embora. Sentados num velho toco, mão na mão, olho no olho, sorrindo sem jeito, eu era o seu escolhido, agora me dou conta disso. Eu falava muito; ela, quase nada. Sua atenção me encantava. Eu dizia de minha mãe e de mim, de nossa condição, da crise na cidade. E um açude me fugia pelos olhos. Ela também chorava, vendo a minha comoção. Prometeu trazer uma cesta só para a gente, algumas roupas, outros gêneros alimentícios. Cada promessa, uma porta de luz que se abria. Parecia que o paraíso viria se instalar ali. E a paz celestial habitou por um instante a minha boca de dentes estragados.

O tema da solidão é abertamente tratado, até porque cada conto tem uma epígrafe e a maioria ou fala diretamente de solidão ou transmite um ambiente de solidão. As epígrafes são de livros pouco circulados, desses que raramente se encontram nas vitrines das livrarias. Por que elas habitam italicamente o logo abaixo dos títulos dos contos? Sim, podem dar um clima, mas não parecem essenciais aos próprios textos que as seguem. Duas possibilidades, no mínimo: uma é ventilar boas escritas pouco divulgadas, que encantam o autor; outra é que talvez tenham sido a provocação de cada história. O fim do livro traz as referências das epígrafes usadas. Dá boa curiosidade de ler também esses escritores citados, pra quem já não os conhece — Maria Valéria Rezende, Prêmio Jabuti de 2015, é das mais conhecidas do grupo, mas talvez não fosse ainda tanto, quando da primeira edição da obra.

No texto Sobre o autor, também no fim do livro, descobre-se que essa obra, publicada pela editora Ficções em 2015, já tinha virado livro dez anos antes, numa edição dita não-comercial. E esta primeira edição levava o título de outro conto: Imensa asa sobe o dia. Tanto esse título quanto o próprio conto são mais líricos do que O dia em que comemos Maria Dulce. O que parece é que a troca favorece o clima geral do livro.

Chama atenção que o autor não carrega sua narrativa com regionalismo. Não abusa de malabarismos estéticos, usa a língua mais pela precisão.

Jailson
Todos os personagens centrais dos contos têm o mesmo nome. Jailson é um rapaz que tenta ganhar um sorriso mas recebe uma pedrada do mundo, ao tentar recuperar a bolsa roubada de uma mulher — e há mais o que dizer desse conto. Jailson é um dos meninos com fome que devora o doce menina Maria. E enfrenta o temido Amarelo no bangue-bangue brasileiro que encerra a sequência de 13 contos. Jailson não é o mesmo, mas está em todos os textos. Ao mesmo tempo Jailson é todo mundo. O que o livro apresenta é que essa escolha do autor também favorece a aproximação, a partir da pergunta que o leitor se faz em algum momento: é o mesmo cara? É e não é. Então podia ser eu. Então pode ser qualquer um, a sofrer injustiça, ser amassado pela pobreza, escanteado pela incomunicabilidade, internado pela discordância.

Poeta
O décimo-primeiro conto, O poeta, tem algumas chaves possíveis de leitura, que engrandecem a experiência. Li que Antônio Mariano é poeta, mas não procurei (ainda) ler sua poesia. Estou resenhando este livro e tento me ater ao que o livro me diz. Se soubesse mais sobre o autor, talvez nem conseguisse fazer esse isolamento, com seus prós e contras. Mas o fato é que esse texto em questão também parece um tratado sobre questões literárias. Qual a missão do poeta, assim que ele se reconhece como tal? O conto começa pelo desfecho da história: Jaílson Gomes da Costa — esse sobrenome de atum em lata é tão emblemático! —, funcionário público, é internado para tratamento psiquiátrico. Ele passa o conto repetindo uma epifania, de que é poeta, sou poeta, sou poeta, sou poeta. Nessa nova condição que apresenta, sofre uma série de atentados contra a vida. Mantém-se firme como um Bartleby. E sem escrever nem recitar verso nenhum, sou poeta, sou poeta, sou poeta. Até que desenlata sua sinceridade espontânea num momento crítico que nos faz entender o porquê da internação. Um porquê explicável não nele, mas pelo entorno, pelo medo, pela sociedade. Então, trata-se de dizer ao leitor algo sobre um engajamento necessário com a vida real que o poeta deve ter? Pode ser…

Bolsa
Os preconceitos e julgamentos fáceis na nossa sociedade estão escancarados no conto Herói interrompido. A ambientação põe o leitor no centro de João Pessoa, capital da Paraíba. Mas pode funcionar no centro da maioria das médias e grandes cidades brasileiras, trocando o nome de uma rua, de uma praça. Nesse onde, Jailson, agora um paraibano analfabeto, trabalhador da construção civil, paquera moças depois do expediente, em olhares e desejos além dos óbvios, carnais, desejos de vida melhor, de amor, de felicidade, e acaba testemunhando um roubo. A mulher bonita aos olhos dele teve a bolsa levada por um rapaz, como ele, “magro, baixinho e preto”. Jailson corre atrás do rapaz. A perseguição dura uma vida, no que passa pela cabeça de quem caça um pouco de justiça e reconhecimento. Até que esse tiro sai pela culatra e o atinge em cheio: ninguém nota a diferença entre caça e caçador.

Chama atenção que o autor não carrega sua narrativa com regionalismo. Não abusa de malabarismos estéticos, usa a língua mais pela precisão. Como temas, evoca a violência que mora até dentro de seres costumeiramente muito pacíficos, evoca a pobreza, o preconceito social e racial. Outro valor do livro está na estrutura dos contos, tramas que vão aumentando a tensão e, mesmo sem reviravoltas mirabolantes, têm desfechos que surpreendem. Agora sim, vou procurar sua poesia já publicada e aguardar pelo romance.

O dia em que comemos Maria Dulce
Antônio Mariano
Ficções
122 págs.
Antônio Mariano
É de João Pessoa (PB). Publicou cinco livros, desde o início da década de 90, de poesia e conto. Os de poemas: O gozo insólito (1991), Te odeio com doçura (1995), Guarda-chuvas esquecidos (2005) e Sob o amor (2013). De contos, este O dia em que comemos Maria Dulce (2015).
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

Rascunho