A começar pelo título, Todas as vozes cantam, o livro de estréia do poeta Leandro Jardim é todo marcado pela humildade de se assumir imbuído dos vários timbres auscultados no caminho: “há como te ser?”. Embora qualquer ser humano exista contaminado pelas obras que leu, pelos lugares que visitou, pelas gentes e coisas com as quais morreu e ressurge, poucas vezes esta caixa de ressonâncias é trazida à página de modo tão sincero, o que não significa, em Jardim, o empobrecimento do potencial velante da palavra a redundar no óbvio: o fato de que somos feitos por um trançado de “diálogos” com “tendência pra variedades” e “transformações por contextos”.
O que não é óbvio no mundo das subjetividades — mas comemorado em Leandro Jardim — é o esvaziamento desta retórica egocêntrica a partir da qual fomos educados a entender a poesia como expressão de um eu, de maneira que esse autocentramento ratificasse uma genialidade essencial, um apartamento das dimensões da interioridade e da exterioridade (“É coisa de dentro ou de fora?”), como se um não fosse gerador do outro e os contornos, previamente definidos, permanecessem estáticos. O poeta não quer “falar sozinho” e “espelhar somente a alma sua”.
Mediante o apelo recorrente à segunda pessoa do singular (“eu que não sou nada/ apenas teu”), somos assim convocados a um mundo de referências e reverências pessoais, literárias, não fossem os catorze poemas dedicados a companheiros de vida, as homenagens a Fernando Pessoa e Manoel de Barros, bem como as reveladoras epígrafes de Drummond e Paulo Leminski. De Pessoa certamente o encanta a polifonia heteronímica, a busca de uma poesia de pensamento, menos fanopaica do que logopaica, cujos momentos de quase prosaísmo parecem caros aos poemas distendidos de Jardim, à exceção dos instantes em que o jogo de palavras leminskiano o inspira ao comedimento, de polifonia agora rímica, ou, na pista de Barros, de poligrafia lingüística, a propor desconsertos e concertos sintático-semânticos. Tudo reunido por um drummondiano — porque universal — “sentimento do mundo”, cujas “mãos dadas” se transfiguram no “coro contemporâneo” deste rapsodo de 28 anos.
Em se tratando de estréia, devemos ser pacientes — o que não equivale a dizer menos exigentes — no julgamento artístico do livro. Só há sentido em exigir mais de alguém, e perseverar nessa exigência, se o criticado tem reais condições de se superar diuturnamente. Por isso, não podemos deixar de pôr em questão os diversos recursos de linguagem forçadamente utilizados por aquele que, sedento de explorar os ensejos lúcidos da palavra, deixa ainda à mostra os andaimes da casa construída. Sobretudo no que diz respeito ao uso das rimas, majoritariamente soantes (“embora porque é hora/ porque é manhã agora/ manhã doce com cheiro de amora”), não raro vertidas de maneira pouco fluente, levando-nos a suspeitar de alguma gratuidade ou falso ganho estilístico: “Tudo é métrica/ Não simétrica,/ mas rimétrica./ Essa é minha estética”.
Os melhores momentos de Todas as vozes cantam acontecem quando o poeta abre-se ao pensamento originário, liberto de qualquer a priori estético (“o que é bonito separa-se, é classificável?”), para além das armadilhas de parecer criativo graças a trocadilhos e jogos sonoros inócuos: “forte risco de ser em vão/ (tentação)./ É ao menos a tentativa, então”. Não que se proponha descartar a técnica em nome de um vale-tudo inconsistente (“Ah, poesia, minha seita!/ Ah, papel, que tudo aceita!”), mas lembrar que o aparato técnico deve servir a uma arte e não esta vir a reboque daquele: “Sou poeta, e daí,/ se a matéria prima/ pela vida?// (E não pela rima)”.
Depois de Leandro Jardim expor os fluidos tantos que transpira em seu corpo poético e emotivo, é possível que nós, leitores por ele desejados (“preciso da opinião alheia”), nos convertamos em mais um destes suores capazes de alimentar o calor de seu trabalho e respiração. Afinal, “o ar que se expira também tem oxigênio” e, inspirados pelo do poeta, devolveríamos: “então lê aí e me diz o que achou”.