Japonês diferente

Misturando as culturas ocidental e oriental, livros de Haruki Murakami evitam rotulação fácil
Haruki Murakami, autor de “Norwegian wood”
01/08/2005

Mesma coisa nem sempre é um caminhão cheio de japonês. Na boa literatura de origem nipônica que tem chegado às prateleiras brasileiras recentemente, os livros de Haruki Murakami diferenciam-se justamente por não evidenciarem as raízes do autor, como geralmente ocorre com escritores consagrados como Yasunari Kawabata, Yukio Mishima e Kenzaburo Oe. Até mesmo Junichiro Tanizaki, com seus enredos ousados e personagens densos, ainda mantém um cenário tipicamente oriental em suas tramas. Murakami é diferente, não necessariamente pior ou melhor, mas diferente. Inclusive entre suas próprias obras há diferenças marcantes.

Os dois livros de Murakami que agora são lançados no Brasil, Norwegian wood e Dance, dance, dance, dão uma boa noção de por onde transita a obra do autor. O primeiro deles, publicado no Japão em 1987, chega até nós com muito atraso, pois foi um sucesso mundial e é o principal trabalho de Murakami. A tentação para classificá-lo como um romance japonês é muito grande quando se lê sobre personagens chamados Toru e Naoko e suas vivências em Kyoto e Tóquio. Mas dar um rótulo nipônico a essa bela história de amor e estoicismo seria reduzi-la, pois, colocando-se nomes ocidentais nos personagens e nos lugares que o livro retrata, veremos que seu alcance é universal, e que ele contém uma profunda e otimista percepção do ser humano numa das fases mais intrigantes da vida: a chegada à maturidade envolta pela descoberta do amor.

Toru e Naoko são intimamente ligados por uma tragédia: o suicídio de Kazuki, namorado de Naoko e grande amigo de Toru. Ao mesmo tempo em que une o casal, a morte de Kazuki o separa, por causa abalos profundos na garota, obrigada a internar-se numa clínica para recuperação. Quando se descobrem apaixonados, Toru e Naoko são afastados pela doença psicológica da moça.

Toru, recém-entrado na universidade, passa a viver em constante inquietação, pois no limiar da maturidade, quando acaba de sair da casa dos pais, tem que tomar decisões fundamentais para sua existência.

Mais do que um romance de formação, Norwegian… é uma ode ao amor e a sua capacidade de conduzir o ser humano, mesmo que ele não perceba a extensão de sua força. Toru não se dá conta, mas é um jovem movido pela esperança do amor. É essa esperança que lhe transforma numa pessoa com retidão e vigor, superando todas as outras efemeridades da vida, como as amizades superficiais, a rasa atração sexual da juventude, os apelos da vida material liderados pela sociedade do consumo e da vaidade. Toru convive com esse mundo mas não lhe pertence, vai crescendo apesar dele. Essa é a mensagem clara de Haruki Murakami em Norwegian wood, um livro melancólico, profundo, habilmente escrito e finalizado.

Com frases como “a morte não é o oposto da vida, mas uma de suas partes constituintes”, ou decisões como a de “parar de fumar porque não suportava acordar de madrugada e perceber que estava sem cigarros e não queria depender de algo a esse ponto”, Toru é um herói humano que levou Norwegian wood a ser reverenciado no Japão e a chegar a mais de quatro milhões de cópias vendidas.

Haruki Murakami não é apenas um autor japonês diferente. É também inquieto. Morou na Europa e nos Estados Unidos, e apaixonou-se pelo jazz, chegando a ter um bar em Tóquio. Segundo o autor, foi no jazz bar que aprendeu tudo o que precisava saber sobre a vida. É um certo exagero, mas as perambulações pela cultura ocidental influenciaram bastante Murakami. O título Norwegian wood, por exemplo, é o de uma canção dos Beatles, e o livro começa com Toru ouvindo-a em um avião na Alemanha, o que o faz recordar-se de sua juventude. Mas nesse livro é só. Apesar do título, Norwegian wood não é obra de um nipônico metido a moderninho.

Já em Dance, dance, dance, Murakami deixa transparecer sua paixão pela música e pela cultura ocidentais. A obra em si é carregada de um realismo fantástico surpreendente para a literatura japonesa. Surpreende mais ainda que Dance… tenha sido lançado apenas um ano após Norwegian wood, mostrando um total desprendimento do autor de sua obra-prima.

Ambientado em Tóquio e Sapporo, o romance aborda temas como a solidão e o amor, mas é um trabalho que evidencia a instropecção do protagonista em meio à cultura pop que ele aprecia. Ao som de músicas ocidentais dos anos 60, 70 e 80, o narrador, um redator free lance, e seus amigos vivem num mundo de carros importados e Dunkin’ Donuts, e acabam se envolvendo com o assassinato de uma garota de programa.

É um livro premonitório. Há quase 20 anos Murakami descreveu uma Tóquio do futuro próximo. O cenário pelo qual transita o redator é facilmente percebido na capital japonesa de hoje, com sua inacreditável e dissimulada rede de prostituição, e onde se notam um alto consumo da cultura de massa ocidental e uma imensa valorização de tudo que é importado.

Apesar de desfilar um rosário de adoração pela música ocidental — que chega a cansar o leitor em certo momento —, o diferencial de Murakami nesta obra é o fantástico. Ele dá continuidade ao homem-carneiro, protagonista de Caçando carneiros (lançado pela Estação Liberdade, em 2001), uma espécie de oráculo pós-moderno que orienta e estabelece as conexões do narrador-protagonista (“Tome cuidado, viu? Se não quiser ser morto, é melhor ter cuidado. A guerra sempre existe. Em qualquer época. Não há razão para deixar de existir. No fundo, os seres humanos gostam de matar uns aos outros. E todos se matam até cansar. Quando se cansam, fazem uma pausa para repousar. Depois começam de novo.”).

O mistério em Dance… começa quando o narrador vai para um hotel na gelada Sapporo, ao norte do Japão, em busca de Kiki, uma antiga paixão. O hotel foi substituído por um mais moderno, mas que mantém o nome do anterior. Lá o narrador reencontra o homem-carneiro, e aí começa um emaranhado de descobertas. Ele volta a Tóquio, vai para o Havaí, e uma sucessão de mortes o acompanha.

Apesar da presença menor do homem-carneiro, Dance… tem uma trama que lembra Caçando carneiros, em que o protagonista é um jovem publicitário de carreira enfadonha que se envolve com o submundo japonês. O tema da amizade também é recorrente em Dance…, a partir do reencontro do narrador com Gotanda, um ex-colega de escola que acaba virando um ator famoso e, principalmente, quando o mesmo se torna o tutor não-oficial de uma adolescente negligenciada pelos pais.

Para conhecer a obra de Murakami vale a pena ainda conferir Minha querida Sputnik (no Brasil, em 2003), que completa o quarteto de seus livros disponíveis no país. Minha querida… conta a história de Sumire, uma jovem de 22 anos que se apaixona pela primeira vez e tem como alvo Mil, uma mulher casada e 17 anos mais velha. Mas, enquanto Mil é uma mulher glamourosa, uma bem-sucedida negociante de vinhos, Sumire é uma aspirante a escritora que, em nome do desejo, mudará a sua trajetória.

Haruki Murakami também é um escritor que muda sua trajetória de um livro para o outro, mas que mantém a sua qualidade. Um autor japonês que surpreende por suas diferenças.

Norwegian wood
Haruki Murakami
Trad.:
Objetiva
356 págs.
Dance, dance, dance
Haruki Murakami
Trad.:
Objetiva
504 págs.
Paulo Ambrósio
Rascunho