Em meio às cerimônias de despedida de Jamil Snege, penso em sua imagem não de grande escritor, ou de homem afetuoso, mas em seu inesperado, embora forte, retrato como analista do mercado literário. Temos no Brasil, felizmente, alguns escritores que, não só com suas obras, ou palavras mas, sobretudo, com suas atitudes, assumiram essa posição: Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Fernando Monteiro, Dalton Trevisan estão entre os mais importantes. A eles se deve juntar, obrigatoriamente, e em posição destacada, o nome de Snege.
Raduan Nassar deu se veredicto a respeito do mercado literário quando desistiu da literatura para criar galinhas. Mas, é importante perguntar, de que ele realmente desistiu? Um escritor pode se esconder (é o caso de Dalton, como do norte-americano J. D. Sallinger e também do português Herberto Helder), abdicando assim de sua imagem pública de escritor, e, ainda assim, prosseguir em sua obra. Raduan fez exatamente o contrário: desistiu da obra, mas continuou a “existir” como escritor. Pode ser ouvido em palestras, lido em entrevistas, visto em eventos literários. O que, numa leitura simplória, e venenosa, é tomado às vezes como um desajuste narcisista, na verdade pode e deve ser lido como uma interpretação radical a respeito do mercado em que hoje a literatura se faz.
Talvez Raduan Nassar tenha desejado nos colocar diante de uma verdade brutal: a de que, no mundo de hoje, o escritor (ou sua assinatura) vale mais do que aquilo que ele escreve. Fala-se num inédito de Raduan, ou de Rosa, ou de Joyce, como se estivéssemos falando num novo modelo de freezer, ou de microcomputador. Fala-se, mas não se lê. Ou pouco se lê. A obra se torna quase dispensável, de tal modo desaparece sob a grife cintilante, que toma seu lugar e a substitui. É mais importante ter um Rosa autografado do que ler Rosa. Nesse momento, a literatura ficou para trás, perdeu toda a importância.
João Gilberto Noll, em vez disso, tomou uma atitude mais introvertida e mais pessoal: decidido a escrever a qualquer custo, e sem conseguir viver de sua literatura, passou a transitar em busca de um refúgio, a viver precariamente, como um exilado, anos e anos a fio, um nômade a carregar seu peso de letras. Imolou-se um pouco enquanto sujeito, esquivou-se do mundo, de suas possibilidades e de suas vantagens materiais. Mas, com seu perfil de andarilho, nos forneceu uma interpretação ainda mais radical do mercado, como um nicho cercado de excluídos — homens apagados, exatamente como aqueles que transitam em seus belos romances, a rondar e a rondar. Noll assumiu a condição de exclusão, nela trabalhou e com ela sobreviveu. E com ela construiu uma obra ímpar. E só recentemente, com a imposição enfim da obra ao mercado, pôde, pela primeira vez, depois dos 50 anos, respirar um pouco mais. Sua coragem pessoal indica que, quando o escritor tem certeza de sua vocação, não há limite ou obstáculo que o impeça de escrever. Mais que isso: que o escritor, esteja onde estiver, estará sozinho.
Noll clareou a fronteira, cada vez mais cinzenta e invisível, entre a literatura e o mercado. Não se trata de santificar a literatura, para satanizar o mercado editorial. Isso é ingênuo e, além de tudo, ineficaz. Mas de ver cada coisa como o que ela realmente é. Muitos escritores “de mercado” julgam-se escritores só porque escrevem livros, vendem, dão entrevistas e são reconhecidos como tais. Até certo ponto, mas só até certo ponto, muito enganoso e traiçoeiro, eles estão certos, pois vivemos num mundo de imagens difusas, de figuras imaginárias — e seu domínio não se restringe à TV ou à tela do computador, elas estão espalhadas pela vida real. Falamos de atores, jogadores de futebol, desportistas, corruptos, assassinos, como se pertencessem a nosso círculo íntimo. Será que a figura pública do escritor interessou a escritores como Balzac, Lima Barreto, ou Pessoa? Será que, para eles, “ser escritor” tinha algo a ver com a literatura?
Ao contrário de Raduan e de Noll, o pernambucano Fernando Monteiro fez seu trajeto de interpretação do mercado literário no interior da própria obra. Desde o primeiro livro, interessou-se por narrativas que o surpreendam, que escapem a seu controle racional e a sua autoridade de autor, que a solapem. O que busca Monteiro? Destruir-se, como se poderia julgar facilmente, ou, ao contrário, fortalecer-se, praticando uma literatura que escape ao sistema literário e, talvez, à própria literatura enquanto instituição? Escreveu narrativas densas, brutais, mas de acesso difícil; elas estão decididamente vedadas a qualquer forma de compreensão clara, ou leitura explicativa. Não só rejeitam, mas dificultam, e até impossibilitam, qualquer interpretação. Sua força está, justamente, em se colocarem como obstáculos.
Monteiro ausentou-se do coração da própria obra, escrevendo dos cantos, como se fosse um intruso, ou mesmo um invasor de seus próprios livros, e com isso nos colocou frente a frente não só da precariedade da criação, mas da posição alienada que todo escritor tem diante daquilo que escreve. Alienação original que o mercado literário tenta vedar com entrevistas, depoimentos, biografias, dissertações e, sobretudo, com a imagem pública do escritor, produto imaginário que mostra um sujeito sorridente e onipotente em sua biblioteca, cachimbo na boca, a barriga cheia de diretos autorais. Fernando Monteiro se protegeu, assim, do ataque e das solicitações de mercado, da crítica universitária ou jornalística, da opinião de editores e livreiros, e até de si próprio. Entregou a obra à absoluta e infernal liberdade que é o existir sem saber por quê.
Fazendo exatamente o percurso inverso de Raduan Nassar, o paranaense Dalton Trevisan continuou a escrever, mas “sumiu” da cena literária. Foi uma outra maneira de apontar a distância, o abismo que barra o escritor de seu escrito, aquele estado de cisão essencial sem o qual a literatura se torna apenas encomenda, ou mentira. Para escrever, Dalton precisou desexistir — o que é bem diferente de anular-se, ou de matar-se. Sumindo, tornou-se ainda mais presente. Transformou-se naquilo que todo escritor sempre é: aquele desaparecido que o leitor procura obstinadamente atrás da obra, mas jamais encontra. Como um assassino, ele deixa pistas, vestígios, pegadas, e com isso trabalham os jornalistas, os biógrafos, os estudiosos, mas há sempre uma pedra no meio do caminho e essa pedra é a literatura.
Contudo, agindo assim, Dalton conseguiu um outro feito: transportou sua própria figura pessoal, vacilante e imprecisa, para o domínio do literário. De autor se fez ator, ou personagem, não de seus próprios livros, mas da cena literária. Poucos personagens (Capitu, Diadorim, GH…) ocupam espaço tão espetacular no imaginário dos leitores brasileiros quanto Dalton Trevisan. O que ele fez, afinal? Enquanto outros escritores se colocam à frente de seus livros, pontificando e fazendo “vida social” de autor, Dalton se dissolveu dentro dos seus. É quase como se não houvesse um escritor chamado Dalton Trevisan. Como se Dalton Trevisan fosse apenas um personagem de Dalton Trevisan. E não é?
E, diante deles, o que fez Jamil Snege? Na resposta mais direta de todas, na mais clara e brutal, simplesmente escreveu, continuou a escrever, e a publicar, e a dar entrevistas e a aparecer como faz qualquer escritor comum, recusando, porém, qualquer tipo de parceria com o mercado editorial. Como um adolescente receoso, Jamil editou seus livros sempre pagando a publicação do próprio bolso, em edições precárias e pessoais, ou através da pequena (hoje já nem tanto) editora de seu amigo mais próximo, quase irmão, o jornalista Fábio Campana, da Travessa dos Editores. Ele também, Campana, um escritor, que se ofereceu assim como coadjuvante nessa sábia aliança. Tanto que hoje é, sobretudo, por textos marginais e recusados pelo mercado que a editora se interessa.
Ao recusar tanto as regras, quanto as regalias do mercado, Snege optou pelo precário, o limitado, o pessoal, o intransferível e também inconfundível que marca o livro “de autor”. Não só suas narrativas são ímpares e inconfundíveis. Não só o “conteúdo” é intrigante e inesperado, mas também o objeto, ou mercadoria, isto é, o produto livro, em seu caso, faz o mesmo jogo de aparecer e desaparecer, existir mas não existir, repetindo a mesma estratégia que caracteriza sua literatura. Produto? Provavelmente esta denominação não dá conta dos livros que Jamil Snege escreveu. Não produto, como um fogão, ou uma calculadora, mas reduto — em vez de um objeto, manipulável e negociável, um lugar que Jamil construiu para se abrigar e se esconder. Um lugar chamado literatura. Pense em Kafka, em Pessoa, em Tchekhov, em Yeats, em Virginia Woolf. Não é o que os grandes escritores costumam fazer?
Agora que Jamil Snege morreu, e que está escondido para sempre, talvez possamos entendê-lo um pouco melhor. Não mais atribuir essa estratégia, como tantos fizeram, a uma questão de temperamento, a uma mania de tímido, ou até a uma rabugice pessoal. Mas tomá-la como uma interpretação — radical e ensurdecedora — a respeito daquilo que todos nós que continuamos a escrever estamos realmente fazendo.
LEIA O TEXTO 25 CIGARRO DE MIGUEL SANCHES NETO SOBRE JAMIL SNEGE