Itinerário crítico

A coletânea "Seja como for" mostra a capacidade de Roberto Schwarz unir, com acurada fundamentação histórica, análise literária e comentário político
Roberto Schwarz, autor de “Seja como for”
19/09/2020

Em forma de coletânea de entrevistas, de seleta de ensaios ou de análise coletiva, publicações recentes têm radiografado o percurso de alguns dos mais expressivos nomes dos estudos literários brasileiros em atuação ou ainda influentes. Saídos por editoras de diferentes portes e perfis, esses trabalhos nem sempre circulam na medida de sua relevância, e sua menção aqui é também desejo de notícia. Que eventuais lacunas sejam lamentadas pelo que ignoro, mas que no lapso também se perceba a fertilidade do tipo de fazer em destaque, a se perder de vista.

Designando a organização e o ano entre parênteses, cito, portanto, Reflexão como resistência: homenagem a Alfredo Bosi (Augusto Massi, Erwin Torralbo Gimenez, Marcus Vinicius Mazzari e Murilo Marcondes de Moura, 2018); Antonio Candido 100 anos (Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz, 2018); [Antonio Carlos] Secchin: uma vida em letras (Maria Lúcia Guimarães Fonseca e Godofredo de Oliveira Neto, 2011); Luiz Costa Lima: uma obra em questão (Dau Bastos, 2010) e Luiz Costa Lima: um teórico nos trópicos (Aline Magalhães Pinto, Ana Lúcia de Oliveira e Dau Bastos, 2019); Razão nas letras: a obra e o percurso de Roberto Acízelo de Souza (João Cezar de Castro Rocha e José Luís Jobim, 2019); e 35 ensaios de Silviano Santiago (Ítalo Moriconi, 2019). Emblemática, a lista é fartura e é falta, e para lembrar um gênero e alguns nomes não contemplados por empreitadas dessa natureza, pergunto, com base em longevidade, volume e importância laboral, que serviço à área poderiam prestar iniciativas semelhantes acerca de Flora Süssekind, Leyla Perrone-Moisés e Walnice Nogueira Galvão, para só ficar com três.

Já mencionado pela organização de um volume, Roberto Schwarz é agora tomado em seu itinerário crítico num livro por ele assinado. Como que complementando Candido, Schwarz & Alvim: a crítica literária dialética no Brasil (Edvaldo A. Bergamo e Juan Pedro Rojas, 2019) e, especialmente, Um crítico na periferia do capitalismo (Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata, 2007), Seja como for reúne, nos termos do subtítulo, “entrevistas, retratos e documentos”, feitas com, feitos por e de Roberto Schwarz ao longo dos últimos 50 anos aproximadamente. Síntese aguda, o volume dá relevo a fatores elementares da obra do crítico; sublinha sua produção para o teatro; realça sua ativa participação no debate público; e contribui para que se perceba sua centralidade na crítica literária brasileira.

Seja como for abre e fecha com documentos, únicos no volume. Além desses dois, integram-no trinta e sete textos, divididos em duas seções — a primeira agrupa entrevistas; a segunda, breves textos sobre autores diversos (os retratos). O primeiro dos documentos referidos se situa como um preâmbulo, denominado Bastidores. O outro, que conclui a obra, é situado no conjunto dos retratos. Embora situados como antípodas, o registro de perseguição ao crítico pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), na abertura, e a carta enviada a Antonio Candido, no desfecho, datam do período em que Schwarz esteve exilado na França, entre 1969 e 1978, quando no Brasil se radicalizava a violência da ditadura.

Ambos os documentos explicitam obstruções por motivação ideológica. O parecer ditatorial decorre da publicação do ensaio Cultura e política, 1964-1969 na revista francesa Les temps modernes, em julho de 1970, e tacha de “filosofia-pirata” o que vê no ensaio como plano da esquerda para “desmoralizar instituições vigentes, valores tradicionais da sociedade: família, religião, sexo, dinheiro, personalidade etc.”. Já Peripécias de um doutoramento é a epístola em que Schwarz narra a seu orientador os percalços enfrentados para defender sua tese, porque, na palavra do então doutorando, um dos avaliadores achou “inaceitável” o que terminou por sair em livro com o título de Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, um dos principais trabalhos do crítico.

Dados em âmbitos e em graus diferentes, os fatos expõem a gravidade do estigma ideológico que avança para a anulação intelectual e a perseguição pessoal. E se em relação aos oponentes os episódios revelam arrogância e ameaça, de Schwarz eles dão a ver a adesão ideativa que tanto diz de uma aposta de vida. O Brasil oficial de então via no intelectual marxista alguém incompatível com o estado totalitário de coisas, dentro do qual o pensamento questionador é perigo a ser eliminado. E se o país de agora tem ânsias antidemocráticas, algumas páginas de Seja como for demonstram que as ideias do crítico permanecem no lugar de oposição: “Há bastante em comum entre a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 2018, e o golpe de 1964. Nos dois casos, um programa francamente pró-capital mobilizou, para viabilizar-se, o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os rumos liberais da civilização”, diz em Cultura e política agora.

Olhar dinâmico
A orientação marxista de Roberto Schwarz leva-o naturalmente a posicionar-se à esquerda em meio a discussões e eventos coletivos. Mas se o marxismo é base geral para o raciocínio, a dialética de que partilha Schwarz dota-o de olhar dinamizado para avaliar fatos e movimentos sem se deixar guiar por dogmas — que são a absoluta ausência de guiamento. Daí sua participação ativa e efetivamente crítica no campo da esquerda brasileira, observando com lucidez excessos militantes de exilados que conspiravam “tentando derrubar a ditadura lá de Paris”. Daí também as significativas referências a Fernando Henrique Cardoso, com quem diz ter importante dívida intelectual e de cujo governo identifica dificuldades que, no entender do crítico, lá também estariam caso o governo fosse de outra orientação. Não menos significativa é sua relação com o Partido dos Trabalhadores, do qual foi integrante e se manteve como eleitor, mas sem que isso o fizesse ignorar equívocos e contradições petistas. No retrato que faz de Paul Singer, Schwarz chama de “histórica” uma fala do economista, que diagnosticou mudança de rumo do partido quando ele alcançou o poder central do país. Essa percepção complexa do que é complexo se verifica bem numa cobrança que, embora inominada, parece direcionada a Fernando Henrique Cardoso quando das eleições presidenciais de 2018, conforme se anota em Declaração de voto: “Pensando em amigos da vida inteira, eu diria que neste momento a neutralidade entre Haddad e Bolsonaro é um erro histórico de grandes proporções”.

Esse senso apurado de discernimento se estende aos assuntos literários, como no retrato de José Guilherme Merquior, o crítico liberal de quem Schwarz enaltece a “reflexão tão numerosa e cosmopolita”, mas ressalvando-lhe o “conformismo combativo”.

E é nas entrevistas de maior fôlego que se pode verificar o crítico em profundidade, confluindo análise literária e comentário político, sempre com acurada fundamentação histórica. Nelas, Schwarz tem a oportunidade de relatar percursos e defender posições, mas sem que se ausente o confronto de ideias, como ocorre em Machado de Assis: um debate, a melhor parte do livro. E é em tais entrevistas que ele relaciona suas principais referências teóricas, avalia a circulação de ideias marxistas em meios intelectuais e, principalmente, comenta a formulação do conceito das “Ideias fora do lugar” e explica seus trabalhos sobre Machado de Assis, em quem vê “o menos brasileiro dos escritores brasileiros. O maior, mas o menos brasileiro”.

Desde que Roberto Schwarz começou a publicar seus trabalhos, ainda na década de 1960, suas concepções políticas e críticas — interessadas na interpretação da forma literária com base em características e dinâmicas das classes sociais brasileiras — conheceram diferentes fases de prestígio, o que não provocou deslocamento do autor de A sereia e o desconfiado. Seja como for, portanto, pode ser visto como itinerário de um crítico agudo e que há mais de cinco décadas vem confirmando sua capacidade de não perder urgências de vista.

Seja como for: entrevistas, retratos e documentos
Roberto Schwarz
Duas Cidades/Editora 34
448 págs.
Roberto Schwarz
Nasceu em 1938, em Viena, na Áustria, chegando ao Brasil com poucos meses de vida. É formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e cursou mestrado na Universidade de Yale (EUA) e doutorado na Universidade de Paris III (França), ambos na área de estudos de literatura. Lecionou literatura na USP e na Unicamp. Dentre outros, publicou “A sereia e o desconfiado”, “Um mestre na periferia do capitalismo” e “Matinha versus Lucrécia”.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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