Todo livro tem em si sua própria teoria. Tentar dizer algo sobre ele implica uma exigência de respeito nem sempre tangível. Em geral, é o bom leitor, o leitor simplesmente afetivo, que a alcança. E ele, na maioria das vezes, cala, rende-se ao silêncio, a causa maior e o sincero efeito de toda literatura.
Algumas vezes me dediquei ao que chamei de “cronocrítica”, a escrita feita da temporalidade afetiva da leitura. Sempre achei o trabalho da crítica o mais difícil de todos os ofícios da escrita. De certo modo, o mais perigoso e, certamente, o mais miserável. No entanto, se me dedico a ela é porque me encanta justamente seu caráter desprezível. Sei que o crítico, perto do escritor, faz-se o próprio verme: a dedicatória ao começo do Brás Cubas era, sem dúvida, ironia dirigida ao crítico. Avessa ao mistério da poesia, menor do que todas as criações no reino da palavra, a crítica é a própria anti-poesia e, no entanto, ela também deveria tentar, como dizia aquele crítico alemão suicidado pelo nazismo em 1940, ser uma obra de arte.
Crítica contraconsciente
Há vários tipos de crítica. Cada uma concerne ao autor da crítica que partilha com o escritor da literatura — mais obstáculo do que objeto de sua anti-arte — uma única certeza: de que a cada vez que é escrita, a crítica é, como a literatura, ao mesmo tempo, recriada. A crítica inconsciente, aquela do julgamento vulgar e abstrato, não nos interessa. Ela fica para os jornalistas preguiçosos, pois que existem e, prepotentes, lêem pouco ou tristemente. Com seus gestos cansados, rebaixam a crítica à perícia técnica. Crítica meia-boca, da palavra pela metade, do dito pelo não-dito. É a crítica como traição ao escritor e ao leitor, crítica de potência fraca que sempre se pode usar como descomprometimento com o que se diz. Pesar méritos e deméritos formais dos livros é o método dos fabricantes de caixão da literatura.
Contra isso, a cronocrítica que é crítica consciente. Espécie de cronocosciência e contraconsciência: a sinceridade no tempo da mentira como negócio, no país do cordialismo e da lixo-política. Mas um crítico contraconsciente não mente, mentir não é a sua questão, tampouco lhe ocupa a “verdade” como repetição do jargão. Antes, o crítico contraconsciente mergulha no fundo abissal do texto que tem diante dos olhos. Desconfia de seu mero gosto próprio, desconfia do que diz na intenção de dizer o que não se deixa dizer. A crítica contraconsciente é, portanto, cheia de autocrítica, pois se sabe nascida em condições políticas e estéticas, históricas e institucionais. É cronocrítica.
Não é, portanto, mero julgamento no horizonte da poética, é abertura do horizonte estético maior onde o livro surge e que o livro mesmo pode romper. Sabemos que o elemento poético é moral. Ou seja, diz respeito às formas corretas de se produzir uma obra de arte que contentam o tribunalzinho dos júris. Já a compreensão do estético é política, e isso muda tudo quando o que está em jogo é produzir sempre e cada vez mais liberdade de criar.
A autocrítica da crítica contraconsciente é alcançada graças a sua entrega à alteridade: a expectativa sobre o autor criticado, as projeções no horizonte inevitavelmente limitado do crítico, a fantasia que o crítico tem sobre os leitores. “Que dirão os que odeiam este autor?”, “Que dirão os que o amam?” são pensamentos sombrios, vergonhosos, na margem das palavras do crítico. O crítico, este pobre coitado com a faca de dois gumes da palavra, no escuro e afetado por tremores senis… Resta ao crítico, portanto, lembrando Harry Frankfurt preocupado em entender, em alta epistemologia acadêmica, por que o gesto de “falar merda” é tão comum em nossa cultura, evitar fazer o mesmo sobre o livro alheio.
Um livro irônico
Há livros que tornam a questão da crítica ainda mais complicada. Eles perguntam em que sentido se pode falar deles. Perguntam o que há para ser dito. Olham nos olhos do crítico, pedem coragem, ironizam. Foi isso o que senti quando recebi os livros de Regina Benitez publicados em 2012 pela editora Kafka, de Curitiba — cidade onde Regina viveu, trabalhou e morreu. Descobri, tentando entender quem era a autora, que ela fora entrevistada por Rodrigo de Souza Leão, autor fascinante que morreu em 2009, deixando sua obra, como a dela, em ponto de êxtase. Em uma de suas perguntas, Rodrigo se referia a uma matéria da Inimigo rumor em que a resenha literária era defendida como uma bula, segundo ele como “uma linguagem fechada só para entendidos”. Quem, então, dizia ele a Regina, deveria fazer a resenha, o jornalista ou o acadêmico? Regina Benitez respondeu na contramão, com a sinceridade dos que não têm nada a perder, que ninguém devia fazer resenhas. Que resenhas eram inutilidades do tipo de páginas que podiam ser arrancadas.
Deste modo, fico a pensar nestas páginas arrancáveis que ora escrevo à revelia da autora que já não me poderá ler. Espero que não esteja a fazer uma resenha, mas a tocar o espírito que ficou ali na forma de letra. Pois o espírito com que ela respondeu à questão, como quem não tem nada a perder, como quem não espera sequer a mísera resenha, foi o mesmo com que escreveu seus contos despretensiosos, desprovidos de toda má-fé que sempre pode introduzir-se na literatura. Contos carregados de um espírito de liberdade incomum expresso no intenso desejo de escrever.
Surrealidade: estado de espírito
Regina Benitez publicou apenas um livro de contos: A moça do corpo indiferente, de 1965, relançado em 2012 junto a Mulher com avestruz, uma reunião póstuma de tantos outros contos premiados organizada por sua filha com nome de atriz, Greta.
Desses livros se pode dizer que provocam dúvidas não por raciocínio, mas por vertigem. Regina Benitez nos lança a cada conto ao topo de um prédio muito alto, do qual nos faz olhar para baixo exercitando as angústias acrofóbicas da literatura. Todos os contos, ou quase todos, praticam uma espécie de desorbitação, deslocando o leitor de um lugar cômodo. A começar pelos títulos, que já nos colocam em estado de atenção. Poderiam bem ser nomes de quadros no melhor espírito das vanguardas modernas: Menino com tamanduá, Moço e gambá com estrelas, Menino e ouriços, Pássaros e urso, Os minúsculos rapazes do Palace Bar são bons exemplos da marca pictoriográfica desses contos que nos parecem delicadamente legendados ao lado de Mulher com avestruz, no livro homônimo. Do mesmo modo em A moça do corpo indiferente, Ser igual a Rafael, O carrossel no rochedo, Um caminho de espelhos, A menina olhada pelo avesso, Um esboço de insatisfação, As pedras, Alucinação e assim por diante.
Mas o exercício da vertigem é implacável. Na mais simples e corriqueira das histórias contadas, há algo de estranheza inquietante, que facilmente se confunde com o surreal das tintas apresentadas. A comparação com os quadros, mais uma vez, não é indevida. Ela mesma dá o sinal num título que capturei em sua bibliografia premiada: Igual às estranhas mulheres das telas de Marc Chagall, que, espero, seja publicado.
As narrativas marcadas por uma estranha familiaridade falam das sombras da vida, de seus avessos. A surrealidade é estado de espírito que não cessa de irromper na revisão da leitura. Em A menina olhada pelo avesso, por exemplo, a criança que, diante do desejo de matar os irmãos, apenas “Protegeu a idéia e alisou-a mansa ao longo de muitas horas” é o sinal claro de uma confusão sutil entre o real e, mais que o sonho, o desejo. Mas aquela criança ainda pode nos apavorar um pouco mais, abalando a noção da literatura como moral que agrada os conservadores: a menina não comia carne porque preferia um pedaço de carne humana.
Uma visão, um fato, uma memória, uma idéia tornam-se concretos na mais tranqüila ausência de retoque do texto. Isso poderia ser um problema se esperássemos uma literatura de padrão, engajada na fascistóide tendência dominante, em que não é a excelência formal que está em jogo, mas a obediência, no sentido da norma publicitária da linguagem (o realismo achatado) que alguns chamam de literatura. Mas Regina queria escrever por algum outro motivo que não o de agradar editores, mercado (até porque em sua época não existia algo tão apavorante como vemos hoje) ou, como não se pode deixar de dizer, seus dispensáveis resenhistas.
Se a forma dos seus escritos é pictórica, se o conteúdo surge entre o real e o onírico, não é para impor um surrealismo vulgar. A descoberta é a da sombra de um desejo, de uma literatura selvagem que usa o clichê deliciosamente — porque ironicamente: “de que vale vencer, se todos nascemos derrotados. Todos nós morremos, não é?”, é o que nos propõe em A moça do corpo indiferente. Aquela que desistiu de tudo, se apresenta em primeira pessoa com seu niilismo pós-suicida, encontrando um bando de gatos no quintal, comedores da sua própria carne. É verdade que ali, nesse mundo de seres e objetos, há um homem, como em vários contos. Um homem que se torna só uma “imagem vulgar”. As heroínas seguem perdidas, feéricas, desligadas, no meio delas surge André, o homem da Mulher com avestruz (obra-prima) que, perplexo, ajuda-nos a desligar do real.
Quem quiser ler sem se desprender do chão, custará a entender que os bichanos, sejam gatos, sejam avestruzes, são fantasmagorias como as pessoas. Que a carne humana que comem, ou as partes do corpo que permutam, são, no entanto, a parte oculta do real para a qual estamos cegos em um mundo plastificado. Sorte a nossa que podemos ler esses escritos tão vivos.