Alencar foi hábil construtor do romance indianista, mapeando também, com seu regionalismo, um Brasil que necessitava de exata e elevada certidão de existência; não foi menor nem menos poderosa sua capacidade de observação da sociedade aburguesada que circulava em torno de Pedro II no Rio de Janeiro. Sob esse aspecto, o romantismo alencariano oferece grande amplitude ideológica das classes abastadas.
Suas idéias não estavam fora do lugar. Estavam onde deveriam estar: no espírito de época, que se era idealista, via devassidão e perversões com senso crítico aguçado. (O grande Machado de Assis elevaria ao topo essa tarefa, mas — como dizem os justos — sem Alencar, Machado não seria tão machadiano.)
Alencar é, em leitura injusta e equivocada, taxado de inverossímil, descritivo, idealista, “romântico” — e comparado com realistas. Ora, que mais pode um grande escritor romântico em nação recém-nascida senão ser idealista, amante da natureza pátria, da cor local e dos valores que racionaliza? O problema é tratar Alencar como um ingênuo que pratica “idéias fora do lugar” — sem que ao menos se saiba (ao certo) o que Roberto Schwarz quis dizer quando criou tal baliza teórica.
A correspondência entre as expectativas dos leitores (que queriam reconhecer-se nos escritos) e a obra que o ficcionista lhe oferece cria uma polaridade necessária entre o “realismo” das situações e romantismo das convicções ideológicas. É assim que, em Senhora, talvez o maior livro de Alencar, coabitam essas duas esferas, que se mesclam. O romance — taxado equivocadamente de “pré-realista” — navega por sua ambiência e termina do jeito como desgostam muitas leitoras. Ora, como atribuir à heroína valores “feministas” que ela desconhece? Como não perdoar o herói arrivista se havia, lá no fundo, excelência de caráter?
Figura complexa
Mas quem é essa Aurélia Camargo, a tal “Senhora” que nos impingiram goela abaixo na escola? O romance saiu primeiramente em folhetim, sendo publicado em livro em 1875, dois anos antes de Alencar falecer. É o último “perfil feminino” que criou, treze anos depois de Lucíola, onze após Diva, dez depois de Iracema.
Aurélia é, certamente, a figura feminina mais complexa do escritor e uma das maiores da literatura brasileira. Infelizmente pouco lida — até por incautos editores —, várias capas de famosas edições escolares a trazem loura, e assim, platinada, foi parar na TV várias vezes. Mas a linda mulher era morena como cabe às brasileiras. Aurélia tinha belíssimos e longos cabelos castanhos, que a enfeitavam tal qual “um diadema que coroava sua fronte”, deslizando “pelas espáduas”. E longuíssimos cílios, em cuja descrição Alencar não economiza ao fazê-la dançar com o marido, meses depois do triste casamento: “Aurélia cerrara a meio as pálpebras; seus longos cílios franjados, que roçavam o cetim das faces, sombrearam o fogo intenso do olhar, que se escapava agora em chispas sutis, e feriam o semblante de Seixas como os rutilos de uma estrela”.
Aurélia já é trazida à cena na magnífica primeira página da obra, sob hábil recurso semântico que a coloca no firmamento, acima do eixo comum dos mortais: “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclama a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade”.
Note-se que ser “ídolo dos noivos em disponibilidade” é também jeito de a sociedade cortesã diminuir-lhe o valor (um dos temas da obra) e de o autor centrar fogo nas impudências da sociedade abastada e casadoira. Alencar deplora o superficialismo e será impiedoso com a futilidade da elite, que aceita Aurélia (a desconhecida), mas bisbilhota sua vida. Em frase afiada, o narrador afirma:
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia. Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Por que Aurélia vale a fama e o esforço de todos? Porque, como ensina Alencar, acurado na construção da metáfora, traz ela duas qualificações essenciais: “Era rica e formosa. Duas opulências que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante”.
Flor, símbolo feminino de delicada beleza em vaso de pedra rara e de bom gosto. Apenas uma boa metáfora? Não. Alencar quer revelar com ela a têmpera de sua heroína. Tão peculiar é essa mulher que beleza perfeita e frieza marmórea serão a “tônica antitética de sua personalidade”, que o narrador, apaixonado, justifica:
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio da vitória, Aurélia, com sagacidade admirável em sua idade, avaliou da situação difícil em que se achava, e dos perigos que a ameaçavam. Daí provinha talvez a expressão cheia de desdém e um certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga e serena expansão d’alma.
Aqui está o nó górdio da personalidade da moça, tão cara a Alencar: casamento x dinheiro. O amor verdadeiro precisa sobrepujar quaisquer vilezas e dificuldades. Por isso, contra sua real natureza, a moça mascara-se para sobreviver entre a gente que despreza, como se lê no trecho acima citado.
Entretanto, para gosto do leitor, Aurélia não é tão simples ou maniqueísta. Virginal e linda, recém-ungida como herdeira milionária, egressa de pobreza digna, ela traz algo que intriga o narrador e o instiga a partilhar conosco a grande dúvida: por que Aurélia é assim? Em magnífico trecho, Alencar provoca o leitor:
Como acreditar que a natureza houvesse traçado as linhas tão puras e límpidas daquele perfil para quebrar-lhes a harmonia com o riso de uma pungente ironia? Os olhos grandes e rasgados, Deus não os aveludaria com a mais inefável ternura, se os destinasse para vibrar chispas de escárnio.
O grande observador, subliminarmente, por trás da dúvida e sob boa retórica, vai acrescentando camadas à beleza etérea de Aurélia.
Tal mulher misteriosa (ou histérica?), numa sociedade maculada pelo dinheiro, já cumpriria a tarefa que o autor se impôs. Mas Alencar vai muito além: Aurélia não é só bela e fria como “flor em vaso de alabastro”. É bem mais, e temos aí um toque de midas que a humaniza: por traz da expressão paradoxal, essa virgem mulher se torna irresistível, como uma serpente, encantadora e irresistível até ao narrador.
Vingança
Lembremos que Aurélia sofreu profunda decepção quando seu amor, Seixas, a trocou por outra mulher bastante rica. Interpõe-se, assim, entre o amor, o “metal”, que além de rebaixar homens humilha Aurélia e provoca nela “cruciantes apóstrofes contra o dinheiro”. O grande trauma que lhe retorce a alma nasce do amor que dedica a Fernando, esmagado pelo apego ao dinheiro. E inspira, na frase do autor, interessante momento de análise de sua protagonista:
Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja investigação nos abstemos; porque o coração, e ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral. Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos.
Toma forma o vilão: o dinheiro, que corrompe as pessoas. Tais argumentos já estavam em obras anteriores. Mas Aurélia, agora rica (sob insuspeita herança do avô paterno), resolve vingar-se de Seixas, o homem que deixara de ser perfeito. Assim que o reencontra, consegue (sob artifícios que o dinheiro lhe faculta) que ele troque a outra, Adelaide, com quem não se casara ainda, por ela mesma, a moça que abandonara. Paga-lhe, como todos lembramos, um vultoso dote, cem contos de réis.
Em seu retorcido raciocínio, Aurélia usa o dinheiro para vingar-se das próprias vicissitudes que ele trouxera. É esse o ponto nevrálgico da obra que deleita feministas (que Aurélia nunca foi) e causa torpor entre os amantes da narrativa simplória. Ao noivo, seu torpe lugar num casamento farsesco, em dramático diálogo na noite de núpcias:
— Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja e resigne-se cada um ao que é: eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.
— Vendido! — exclamou Seixas, ferido dentro d’alma.
— Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; Sou milionária; Precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento — Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel, no qual Seixas reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos.
Serpente e santa
Para tornar ainda mais complexa a personalidade de Aurélia Camargo, o autor leva adiante o que já havia pontuado. Aurélia ama com volúpia, ama carnalmente. Durante os preparativos da noite de núpcias, flagramos a moça elegante e casta, mas hesitante entre a virgindade ou o prazer quase lascivo de entregar-se àquele que ainda ama, apesar de tudo.
Alencar, que em Asas de um anjo e Lucíola investira na erotização feminina (associada, porém, à prostituição de luxo), atreve-se aqui com tintas bem mais fortes. Em meses de casamento branco, há na heroína manifestações eróticas, ora substituídas por excitados diálogos. Uma noite, porém, a volúpia dessa mulher ultrapassa a encenação social, e ambos, valsando, atuarão como num ato sexual completo — que Aurélia dirige e comanda. O trecho é longo, mas vale:
Era a primeira vez, e já tinham mais de seis meses de casados; era a primeira vez que o braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia. Explica-se, pois o estremecimento que ambos sofreram ao mútuo contato, quando essa cadeia viva os surpreendeu. (…) A cabeça de Aurélia afrontara-se, atirada para o ombro com um gesto sobranceiro e uma expressão provocadora, que por certo havia de desairar outro semblante, mas tinha no seu uma sedução irresistível e uma beleza fatal e deslumbrante.
Nunca se fixou na tela, nem se lavrou no mármore, tão sublime imagem da tentação, como aí estava encarnada na altivez fascinante da formosa mulher. (…) A moça continuara soltando frases intermitentes.
— A casa roda em torno de mim. Depressa não.
(…)
Passavam perto da música. Seixas disse ao regente da orquestra:
— Apresse o compasso!
O arco do regente deu o sinal.
— Mais! — disse Aurélia.
Amiudaram-se as pancadas do arco.
— Ainda mais! — ordenou a moça.
O arco sibilou. Os instrumentos estrepitaram (…) Fernando arrependia-se de ter cedido ao desejo da mulher e começava, ele um dos impertérrito valsistas da Corte, a recear a vertigem. Seu olhar alucinado pelas fascinações de que se coroava naquele instante a beleza de Aurélia, tentou desviar-se e vagou pela sala. Voltou, porém, atraído por força poderosa e embebeu-se no êxtase da adoração.
(…) Já não tinha consciência de si para perceber distintamente a pressão dos dedos em seu ombro. O que se passava nele era uma verdadeira intuscepção da forma peregrina dessa mulher, que ele via em face, mas sentia dentro em si.
Se um retraimento lascivo, peculiar à raça felina, imprimia ao dorso de Aurélia uma flexão ondulosa, que dilatando-se no abalo nervoso, brandia o corpo esbelto, essa vibração elétrica repercutia em todo o organismo de Seixas.
Sexo dissimulado. O moço revelará ao leitor o quanto a ama e deseja. O grande desequilíbrio se arranjará, e o par se entenderá depois da remissão de Seixas, que devolve o dote e recupera sua dignidade. Simples, convenhamos, porém nada mais justo dentro da lógica alencariana.
Então, essa estranha e louca mulher, serpente e santa, cumprirá o papel para o qual fora realmente talhada: amantíssima e dedicada esposa. E o magnífico romance termina quando a felicidade começa, como se lê no último trecho. A flor em vaso de alabastro autentica seu papel na literatura brasileira.