Escrever para não esquecer, para que ninguém esqueça. Talvez esta seja uma das possíveis maneiras de exorcizar os fantasmas autoritários que roubaram vidas impunemente na América Latina há poucas décadas. Juan Gelman nasceu em Buenos Aires, em 1930, e cumpre na literatura latino-americana o importante papel de ser a memória insistente e persistente do período de trevas imposto pelas ditaduras: “e como é que encurva?/ avança o tempo pelas têmporas?/ aqui sangram ao sol da injustiça/ mismamente/ e logo/ que pouquinho/ sede que encova estas paredes/ tanta dor/ tanta dor/ e já me calo/ já/ venha irmãozinho/ são seus cavalinhos/ e tudo o que pensam/ e como ficam bonitos quando falam ao contrário/”. É um dos mais importantes poetas da atualidade e trabalha com maestria o realismo crítico. A história de vida deste filho de judeus ucranianos reflete a dureza da sua poesia. Ele teve o filho e a nora, grávida, seqüestrados pelos militares em 1976. Os restos mortais de Marcelo foram encontrados em 1989. A família do poeta ainda está à procura do corpo de Claudia, a nora, mas em 2000 esta luta ganhou um grande fôlego quando foi encontrada a neta que havia sido adotada por um militar uruguaio 23 anos antes. Juan Gelman ficou 12 anos no exílio, mas não foi este sofrimento que o levou à poesia e sim o amor. Ele começou a escrever aos nove anos quando tentou conquistar uma vizinha de onze anos, mandando poemas de outros autores e foi ignorado. Sentiu que com os seus poemas, ela se entregaria ao amor… Não foi o que aconteceu, mas ele continuou escrevendo para o bem da grande “dama”: é assim que o autor se refere com doçura à poesia. O livro do qual falamos é Isso e integra a coleção Poetas do Mundo da editora UNB. Esta obra foi publicada pela primeira vez em uma reunião organizada pelo próprio autor. Na edição brasileira, aparece o belo trabalho dos tradutores Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves, que no poema Ao redor do qual optaram por não traduzir palavras castelhanas começadas por alm, uma colagem lúdico-vernácula que perderia o sentido na tradução. “…e a almona é lugar onde se pescam savelhas/ e almorta é uma planta de talo herbáceo e ramoso/ e a semente dessa planta é a almorta/…” O presente livro recupera a história poética de Gelman, que fala de amor e de outros conflitos da alma. Afinal, de que é feita a arte senão destas enfermidades? Mas não pensemos só em aridez e desespero, a voz de Gelman é também macia, sutil, irônica, triste, como no belo poema que abre o volume — Aniversário: “respiraria/ rua/ onde agora cai a tristeza?/ enchove?/ mamãe trouxe a tarde/ vou manchar as toalhas/ com certeza/ e adoraria o pito que vai me passar/ suavíssima/ revolvendo minha alma com a colher de sopa/ a última coisa que fez/ antes de morrer/ foi esticar um fiozinho/ para me pôr ao sol”. O livro escrito em Paris, entre 1983 e 1984, tem um caráter memorialista como toda a obra deste argentino e merece estar na biblioteca dos que admiram a força da poesia.
exílio
aqui/ palavra que foi cão
pela cavala que dizia/
já não há nada a fazer/
está a luz/ que tanta sombra fez/
por isso você dói tanto/
beleza?/ me bate
como se fosse seu irmãozinho?/
boca de seu arrabalde?/
o que é você?/ quem é você?/ diga-me um pouco?/
já não será daqui quando nos fomos/
nem me deixa tirar a mão
do fogo de não ser/