Ironia contra o tempo

José Cândido de Carvalho foi um grande renovador da linguagem literária brasileira
José Cândido Carvalho, autor de “Olha para o céu, Frederico!”
01/06/2002

O leitor conhece o Armazém Santa Ana, em Curitiba? Ele fica no limite de Curitiba com São José dos Pinhais, na antiga estrada que ligava Curitiba a Joinville (SC). Acabava servindo de ponto de comércio onde os agricultores de fora da cidade traziam seus produtos — queijos, embutidos, vinhos etc. — e compravam artigos para a roça — enxadas, pás, moedores de café, sal. E onde as pessoas da cidade compravam seus alimentos. Hoje é muito mais um bar que um armazém. Mas a casa de madeira do Armazém Santa Ana está lá, em pé, com as memórias de mais de 68 anos (completadas em 30 de maio) de atividade nas paredes, teimosamente resistindo às manias modernas de fast food, hipermercados, comidas industrializadas e outros que tais. E toda a cidade tem um lugar assim, onde o passado parece resistir ao “progresso”.

Em todos os momentos da história, há sempre estas pessoas que preferem o passado ao presente. Um grupo de seres que, apesar das inovações que lhes são propostas algumas vezes e impostas outras tantas, lutam contra a evolução inevitável. E há quem narre estes momentos decadentes, não significando aqui decadência algo ruim, apenas um sintoma de que o tempo destas pessoas passou. E um dos narradores por excelência deste fenômeno é José Cândido Carvalho, de quem acaba de ser relançado seu primeiro romance, Olha para o céu, Frederico!, mas que é mais conhecido por O coronel e o lobisomem, um clássico da literatura brasileira, relançado em 2000. O projeto da Rocco é relançar toda a obra deste imortal da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 23 de maio de 1974.

Em seus dois romances, Cândido narra histórias de pessoas que não pertencem mais a seu tempo. Em Olha para o céu, Frederico!, o autor toma a voz de Eduardo de Sá Meneses, neto do barão da Pedra Lisa. A família Sá Meneses fez fama e orgulho graças à moagem da cana, que a deixou rica. Eduardo, ferido nos brios por causa de um artigo jornalístico que louvava a imagem de Frederico de Sá Meneses, seu tio e verdadeiro protagonista do livro, resolveu escrever um artigo que descrevesse toda a história dos barões do São Martinho, o engenho principal da família. A raiva de Eduardo é que ele considerava Frederico um meio parente, não um Sá Meneses puro, apesar do nome. Deste artigo nasceu uma contra-resposta, e a que se segue acaba sendo o livro.

Frederico de Sá Meneses é um dos últimos senhores de canaviais e engenhos que resistem na região de Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro. Havia muito o progresso já vinha invadindo aquelas paragens, trazendo maquinário novo, novas técnicas de produção de açúcar, novas técnicas de plantio e colheita. Frederico, no entanto, não sucumbe a nenhum canto da sereia tecnológico. Ele continua com seu engenho antigo, fazendo açúcar mascavo, de baixo valor de revenda. E nunca deixa de apregoar o mau estado financeiro que o acomete. “Estou à beira da bancarrota!” é praticamente sua resposta a qualquer “Bom Dia!”.

Sua sovinice, no entanto, é apenas um disfarce para sua astúcia no conduzir os negócios. Devagarinho, aproveitando as heranças dos parentes vizinhos que não sabiam tocar suas roças, plantações e engenhos, ele vai aumentando o seu poder financeiro. Com método, objetivos e nunca largando mão de seus hábitos espartanos, Frederico espalha em tudo a sua astuta sovinice, que penetra em todos os lugares do engenho. Seu apego ao materialismo é tanto que motiva o padre Hugo a lhe alertar, “Olha para o ceú, Frederico! O que darás a Deus?”, um aviso de que deste mundo nada se leva. Frederico, obviamente, nunca deu bola ao papa-hóstias. Nem para sua esposa, com quem casou com o único objetivo de ampliar o seu poder. Largada pelo marido, é Eduardo quem satisfaz seus desejos carnais.

Como contraponto à discrição de Frederico há o primo Quincas de Barros. Um homem ousado, que não hesita em arriscar tudo para tentar tornar o seu engenho o melhor de todos. Do início ao fim do livro, temos um duelo entre os dois primos, o casmurro e o extravagante, o mudo e o grandiloqüente, o astucioso e o impulsivo. No entanto, a decadência da cana-de-açúcar no Rio é geral, e desta luta não sobrará ninguém.

Ainda que o fio condutor da história, em sua primeira metade, seja a vida de Frederico, e em sua segunda metade, a vida de Eduardo como o herdeiro e destruidor de São Martinho, o engenho da família, o cenário de fundo é justamente o fim de uma época. É o fim do ciclo da cana-de-açúcar no Rio de Janeiro. O fim dos grandes barões comandando capatazes e escravos, pois para eles a escravatura ainda não acabara. É o início da sociedade industrial e urbana, mas tratada sempre com interesse secundário, nunca como protagonista principal.

Em termos de linguagem, Olha para o ceú, Frederico! foi louvado pelos grandes mestres de seu tempo. Mario de Andrade o elogiou, bem como Jorge Amado, Lúcio Cardoso, e outros tantos. Muitos o saudaram como um inovador, ainda que este livro não seja tão bom quanto o seguinte. Mas já é possível ter em Olha para o ceú, Frederico! uma prévia do que seria a característica do trabalho de Cândido: uma linguagem simples sem nunca ser simplória, e que vai buscar nos costumes de sua gente, da cultura goitacaz, como queiram, as palavras e costumes. Cândido não inventa, mas recria a seu modo o que sua gente diz no dia-a-dia.

A excelência, no entanto, só chegaria 25 anos depois, com O coronel e o lobisomem. A história, basicamente, fala das aventuras e desventuras de Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, conseguida por méritos. Neste livro, Cândido parte da linguagem dos goitacazes para criar um estilo próprio, que ilustra perfeitamente a suposta grandeza de Ponciano, um nobre e decadente coronel que tenta sobreviver enquanto o mundo ao seu redor muda completamente.

Apesar deste aspecto do livro, novamente Cândido nos presenteia com uma obra em que o principal são as pessoas, e neste caso os inúmeros personagens que aparecem no livro, e não o cenário político e econômico da época. Lançado originalmente em 1964, Cândido poderia ter tentado fazer uma crítica velada ao que acontecia no Brasil — o golpe militar, a deposição de João Goulart — ou no mundo — a crise dos mísseis de Cuba, o recrudescimento das hostilidades entre União Soviética e Estados Unidos. Cândido joga seu personagem em um passado não muito distante, ainda do século 20, e um tanto quanto próximo de Olha para o céu, Frederico!

Novamente, o narrador é herdeiro de uma grande fortuna. Ponciano, no entanto, é um tipo diferente de Eduardo Meneses. Enquanto este, quando ganha a fortuna do tio Frederico, a desperdiça por não saber conduzir seus negócios, Ponciano só faz aumentar a herança de seu avô Simeão, o homem que o criou após a morte dos pais. A derrocada de Ponciano acontece quando este tenta transferir a sua sabedoria campeira para a cidade, e nela não consegue se habituar.

Ponciano é novamente a pessoa que representa o passado, a imutabilidade em um mundo em permanente transformação. Se durante a sua vida na fazenda Ponciano é o homem certo para as horas certas, nem mesmo os seus maiores esforços o tornam capacitado para entender a vida da urbe. A corte desajeitada que faz às mulheres, o jeito bronco e grosso de ser no trato com os sócios e as autoridades, tudo revela o lado do coronel autoritário que, acostumado a ganhar tudo no grito, tenta reproduzir seus modos em um novo mundo, que não lhe é familiar.

Cândido guarda o melhor do livro para a linguagem que utiliza. As expressões utilizadas, e já descritas por Rinaldo Gama como deturpadas da realidade, e não inventadas, deixam o leitor com um sorriso permanente na cara. Afinal, como não rir de trechos como: “Meio encurvada sobre a cama, balangou o aramado enquanto eu, um pouco atrás, gozava as penugens do seu pescoço e peças em derredor. Subia dos lençóis um cheiro de gavetão, de roupa curtida nas águas de frasco. Logo figurei Ponciano afundado em velhacaria, aboletado nas boas partes de que era servida a mulher do Nogueira”. Ponciano, naturalmente “safadoso e sem-vergonhista”, como muitos de seus amigos.

“Talqualmente” os doutores dos Foros, como dizia Ponciano, o coronel usa em seu proveito o linguajar enviesado, rico em rococós, para lhe conferir ainda mais autoridade perante os povos da lavoura — linguajar este que perde a sua intensidade quando transplantado para a cidade. É a sina do coronel, perder-se ao tentar aculturar-se em um mundo que não é seu.

Cândido, sabedor de que tal coronel seria muito para a realidade, o faz encontrar com o fantástico, e assim consegue situar Ponciano, na verdade uma caricatura de muitos coronéis, alguns deles ainda presentes (infelizmente) no Brasil de hoje, em um Brasil à parte, altamente familiar, mas não verdadeiro. Ponciano luta contra um lobisomem, contra um ururau (“jacaré recoberto de pedregulho, vindo dos dias mais recuados, de não existir papel capaz de caber sua conta em anos”) e contra os encantos de uma sereia. Ponciano também conversa com seu galo de briga, o Capitãozinho Vermelhinho Pé-de-Pilão, galo que desaparece em uma luta sem fim contra uma surucucu devoradora de gado. Até o desaparecimento de Cândido se dá de forma fantástica, quando montado em sua mulinha parte em combate contra o Tinhoso, o Cramulhão.

Para quem teve o prazer de ver a obra de Dias Gomes O Bem Amado na televisão, seja a série seja a novela, notará grandes semelhanças entre o Coronel Odorico Paraguaçu e as personagens que gravitam ao redor dele, e Ponciano e seus personagens coadjuvantes. À época da transmissão de O Bem Amado, Cândido inclusive moveu uma ação por plágio contra Dias Gomes, tamanha a semelhança entre os “pratrasmentes” e os “vamos deixar os entrementes e partir direto para os finalmentes”, usados por Paraguaçu. E não há como não imaginar a voz de Paulo Gracindo na voz de Ponciano (ainda que o tipo físico de um e de outro seja completamente diferente. Tente imaginar: “O falar do capitão era comovitivo e tristoso que perdi o gosto da galhofa”. “… meu cotovelo calhou de empacar junto do braço dela. Como não rejeitasse a vizinhança, fiquei em sossego, no aproveitamento da quenturinha que vinha do encostado…”. E por aí vai.

Cândido não se preocupou em fazer uma crítica ou uma crônica de seus dias. Preferiu relatar personagens que tentaram, cada um a seu modo, lutar contra o mundo que mudava ao seu redor. Seus livros ainda hoje são deliciosos de serem lidos. Ao buscar a fantasia para deslocar o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, “sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada”, Cândido deixou uma bela obra que apesar de pequena conseguiu superar a barreira do tempo.

Biografia
José Cândido de Carvalho foi jornalista de profissão. Nascido em Campos (RJ), em 5 de agosto de 1914, era filho de lavradores portugueses de Trás-os-Montes que se estabeleceram na região de Campos dos Goitacazes como pequenos comerciantes. Quando tinha oito anos, o futuro jornalista veio para o Rio de Janeiro e trabalhou como estafeta na Exposição Internacional de 22. De volta a Campos, continuou seus estudos em escolas. Nas férias, trabalhava como ajudante de farmacêutico, cobrador de uma firma de aguardente e trabalhador de uma refinação de açúcar.

A revolução de 1930 fez o jovem Carvalho trocar o comércio pelas letras. Seu primeiro emprego na nova área foi como revisor do jornal O Liberal. Entre 1930 e 1939, o escritor trabalhou como redator e colaborador de diversos periódicos de Campos, como Folha do Comércio, Dia, Gazeta do Povo e Monitor Campista. Carvalho formou-se bacharel de Direito em 1937, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. A partir daí passou a residir na capital da Guanabara. No meio tempo, mais precisamente em 1936, Carvalho começa a escrever seu primeiro romance, Olha para o céu, Frederico!, lançado originalmente em 1939.

Sua carreira jornalística no Rio de Janeiro começaria pela redação de A Noite. Ao mesmo tempo, exercia um cargo de redator no Departamento Nacional do Café. Em 1942, muda-se para Niterói, para dirigir o jornal O Estado. Em 1957, transfere-se para a revista O Cruzeiro, chefiando o copidesque e dirigindo a edição internacional desta importante revista.

Seu segundo romance, O coronel e o lobisomem, só viria à tona 25 anos depois de Olha para o céu, Frederico!, em 1964. Alguns críticos afirmam que bastaria este romance para colocar Carvalho no panteão dos grandes escritores brasileiros. O livro foi multipremiado, no Brasil e no exterior.

José Cândido de Carvalho assumiu diversas funções na política cultural brasileira. De 1970 a 1974 foi diretor da Rádio Roquette-Pinto. Em 1974, assumiu a direção do Serviço de Radiodifusão Educativa do MEC. Em 1975, foi eleito presidente do Conselho Estadual de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Foi presidente da Fundação Nacional de Arte (Funarte) de 1976 a 1981. E em 1982 e 1983 foi presidente do Instituo Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (Rioarte). Seu terceiro romance, O Rei Baltazar, estava previsto para ser lançado 25 anos depois de O coronel e o lobisomem. No entanto, sua morte, em 1º de agosto de 1989, não permitiu o lançamento desta obra, que não se sabe se foi terminada ou não. Suas outras obras são Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon (1971), narrativas; Um ninho de mafagafos cheio de mafagafinhos (1972), narrativas; Ninguém mata o arco-íris, crônicas (1972); e Manequinho e o anjo de processão, contos (1974).

Olha para o céu, Frederico!
José Cândido Carvalho
Rocco
120 págs.
O coronel e o lobisomem
José Cândido Carvalho
Rocco
313 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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