Oito páginas antes do final de Diário de inverno, Paul Auster começa a narrar um episódio que diz muito da arquitetura do próprio livro: aos trinta e um anos de idade, o escritor acaba de se separar da primeira mulher, tem um filho de um ano e meio para criar, está sem emprego fixo, sem dinheiro e de volta a Nova York depois de um período morando em Paris. A carreira literária, que mal havia começado, encontra-se estagnada, e ele não tem perspectiva alguma para retomá-la. Um amigo pintor o leva a assistir ao ensaio aberto de uma companhia de dança, cuja coreógrafa é sua namorada, no ginásio de um colégio em Manhattan. São oito bailarinos em cena, quatro homens e quatro mulheres, que se movimentam em silêncio, sem música, contrariando qualquer ideia que Auster possa ter de um espetáculo de dança. Além de surpreso ao descobrir essa nova possibilidade, o escritor fica profundamente tocado com o que assiste: “a simples visão daqueles corpos em movimento parecia levá-lo para um lugar dentro de si próprio jamais explorado, e pouco a pouco começou a sentir algo subindo dentro de si, o júbilo físico que era também mental, um júbilo crescente que se espalhava por todas as partes do seu corpo”. A cada seis ou sete minutos, porém, os bailarinos param e a coreógrafa se põe a explicar para a plateia o que acaba de ser visto, e “quanto mais ela falava, quanto mais tentava com ênfase e paixão exprimir em palavras os movimentos e padrões da dança, menos você a entendia, (…) porque suas palavras eram inteiramente inúteis, incapazes de exprimir o espetáculo sem palavras que você acabara de ver, pois não havia palavras que pudessem transmitir, na sua inteireza e fisicalidade brutal, o que os dançarinos haviam feito”. A partir desse episódio, Auster sente-se motivado outra vez, produz um longo ensaio e reencontra seu rumo na literatura.
Descrever com palavras um número de dança, uma tela ou uma peça musical são experiências fadadas a comprovar suas limitações e esbarrar a todo instante em impossibilidades. As palavras conseguem chegar até certo ponto — e tanto mais longe irão quanto maior for a perícia de quem as estiver pilotando. Porém o essencial, aquilo que vai distinguir a arte de um mero movimento sincronizado de corpos, uma reunião de cores e formas ou um conjunto organizado de sons e ritmos, é algo que está muito além da capacidade do texto de expressar em sua completude e complexidade.
Na literatura, cuja base é a palavra, dá-se o mesmo. O essencial quase nunca está na flor do texto, mas escondido sob o brilho das pequenas estrelas do espetáculo, sem as quais tampouco nada aconteceria. E o que seria esse “essencial” que paira além do alcance das palavras? Numa palavra: emoção. O “júbilo físico e também mental”, que Auster descreve com a argúcia de grande ficcionista que é, não passou de um momento de genuína emoção, uma epifania propiciada pela fruição da arte. Para provocar essa emoção no leitor, muitas vezes o escritor precisa criar subterfúgios textuais e mudar situações reais para que histórias verdadeiras mantenham em texto a exata dimensão emocional que tiveram para quem as viveu.
Check-up existencial
Em 2011, às vésperas de completar sessenta e quatro anos, Auster decide fazer um inventário dos fatos mais importantes vividos até aquele momento, numa espécie de check-up existencial antes de encarar a derradeira fase. Poderia pensar num acerto de contas com o passado, mas esse lugar-comum não condiz com a magnitude que se espera de uma obra que leva a assinatura de um dos maiores escritores de nossa época. Dono de uma biografia sem dúvida rica, trazendo na bagagem muitas vivências interessantes para registrar, Auster prefere mirar o microuniverso do próprio corpo e se deter nas pequenas marcas que a vida foi ali deixando: a história de uma cicatriz, de um osso quebrado, de uma dor antiga; quer fazer a conta das viagens que fez, quantas cidades e países visitou, quanto tempo permaneceu dentro de trens, de carros, de aviões; quer lembrar cada cheiro, cada sabor que provou, os esportes que praticou, as mulheres com as quais se envolveu. Quer, enfim, fazer um detalhado inventário de todas as sensações que experimentou. Sob essas, encontrará inescapavelmente o essencial que marcou sua vida. Simples assim.
O livro foi escrito durante o inverno, e a analogia da estação com o final da vida, embora não seja em nada original, é uma ideia que já superou o clichê para se tornar perene. Diário de inverno não foi concebido como um diário convencional (e não há aqui problema algum de tradução, que aliás apresenta a qualidade irretocável de todas as assinadas por Paulo Henriques Britto: o título original, Winter Journal, tem o mesmíssimo sentido da versão em português). Para começar, o livro vem catalogado como ficção, embora seja assumidamente autobiográfico, mas isso não passa de um mero detalhe, posto talvez para preservar a liberdade autoral. Os fatos não obedecem a uma ordem cronológica, como é a forma usual de um diário, mas vêm registrados à medida que foram surgindo na memória do escritor.
Contudo, o que de fato diferencia o Diário… de Auster de qualquer outro relato autobiográfico é um narrador em primeira pessoa que se dirige o tempo todo ao protagonista ¾ este, o próprio autor ¾ pelo pronome você. (Há quem afirme que se trata de um narrador em segunda pessoa, algo tecnicamente impossível, pois só existem duas possibilidades de voz a quem narra: a de um “eu” ou a de um “alguém”. O narrador a quem foi dado o poder extraordinário de se dirigir a uma segunda pessoa, seja ela personagem ou às vezes o próprio leitor, não pode ser outro senão um eu.) Mas o mais interessante é observar que o narrador do Diário… e a pessoa a quem ele se refere são de fato o mesmo personagem, mais ou menos distanciados um do outro em função do tempo, maior ou menor, decorrido entre o episódio vivido e o momento em que ele volta à lembrança do autor para ser narrado. Dito de uma forma bem mais singela: é o Auster à beira dos sessenta e quatro anos interpretando o que sentia o Auster dos cinco, seis, dez, quinze, vinte, trinta anos, ao viver os fatos (ou sensações) que elenca hoje como os mais marcantes de sua vida. Esse é o truque ficcional que permite ao leitor ter a exata dimensão emocional que o Diário… tem para seu autor.
Auster dedica quarenta e seis páginas para relacionar todos os vinte e um endereços onde viveu desde o nascimento até os dias atuais, com datas e registro do que aconteceu de mais significativo em cada um deles, o que não é um exercício apenas burocrático e monótono para o leitor, como já foi sugerido. Há passagens muito divertidas, como a transcrição de trechos de atas de reuniões de condomínio ¾ quem diria? ¾, feitas pela segunda mulher de Auster, a também escritora Siri Hustvedt, que consegue extrair um inusitado humor do mais enfadonho dos assuntos.
Se em seu livro de estreia, Invenção da solidão, Auster tratava da recente perda do pai, na segunda metade de Diário… ele se ocupa agora da figura da mãe. Ela, ao se divorciar, tornou-se um pária dentro da própria família e teve ainda outros dois casamentos para terminar a vida viúva de três maridos. O episódio melancólico de sua morte é um dos momentos mais dramáticos do livro e reverbera as notas do inverno metafórico de Auster.
Diário de inverno é uma obra singular que apresenta a irregularidade típica de uma seleção honesta de fatos da vida de qualquer pessoa de carne e osso. A diferença aqui é o talento de quem seleciona esses fatos e traduz em palavras o que nem sempre elas conseguem dizer.