Inventário de lembranças

"Essa coisa viva", romance de Maria Esther Maciel, mergulha na estreita desunião entre mãe e filha
Maria Esther Maciel, autora de “Essa coisa viva”. Foto: Lana Domingos
01/04/2024

Quem se lança à leitura de Essa coisa viva, de Maria Esther Maciel, encontra no princípio do romance um índice de objetos inanimados, animais e vegetais. Um elenco de vidros de remédios, livros, ervas, álbuns de retratos, cartas anônimas e também formigas, baratas e piolhos. Livres de qualquer hierarquia, os itens dão sustentação à arquitetura dessa bela narrativa para recompor a memória de uma vida. Como leitores, somos compelidos (não sem o fascínio dos voyeurs) a vasculhar os catorze capítulos como gavetas que vão aos poucos revelando fragmentos da existência narrada. E o que vem é pesado.

Transcorrido um ano da morte da mãe Matilde, a narradora Ana Luiza decide encarar o legado dessa difícil relação, escrevendo a ela uma longa carta de onde brotam passagens da infância na fictícia localidade mineira de Terra Verde. Hoje renomada botânica, a protagonista se dedica à tarefa da escrita. O tempo de dentro, como se sabe, não se rege pelos mesmos princípios da cronologia externa. Do lado de fora, o calendário marca o tempo da pandemia, momento de grande instabilidade no mundo e desmandos no Brasil.

A força do romance se sustenta na corda bamba entre o querer dizer, articulando em palavras aquilo que dificilmente consegue ser formulado, e a necessidade de esquecer, suplantando o que deve ficar para trás para seguir adiante. Qual a medida certa dessa equação? “Não sei se você entende o que digo, e tenho dúvidas se eu mesma entendo. No entanto, é o que tenho para dizer.” Aficionada por dicionários, catalogações e verbetes de enciclopédias, Ana Luiza vai classificando objetos, imagens e palavras que iluminam aspectos de sua subjetividade na busca pelo significado das coisas. Da coisa. Essa coisa viva, que pode até ser o amor, mas é sobretudo linguagem, ferramenta possível para acessar dores sentidas e abusos do passado:

(…) não sei por que adiei tanto tempo a escrita desta história que conto a mim mesma ao lhe escrever esta carta que, logo na primeira página, deixou de ser uma carta para ser outra coisa.

Atenta ao universo dos bestiários e a uma linhagem de escritores enciclopédicos como Italo Calvino, Georges Perec e Jorge Luis Borges, Maria Esther Maciel transporta o olhar catalogador para seu próprio fazer ficcional, conduzindo com habilidade um romance em que os experimentos de classificação invadem o espaço do íntimo. A botânica Ana Luiza transita entre esses regimes de conhecimento — não é gratuito seu interesse pelas ditas plantas loucas, descritas pela ciência desde o século 19. Plantas enlouquecem, assim como as pessoas. Autodescrita como Mimosa pudica, nome científico para maria-fecha-a-porta (ou não-me-toques), ela se identifica com o vegetal cuja reação diante do toque externo é o fechamento das folhas. Engasgada por sombras muito antigas, precisa se proteger, escolhendo palavras para desfazer os nós que ainda sufocam.

Reescrever o passado
Sempre arbitrário, o gesto colecionador seleciona elementos aparentemente de forma aleatória — uma boneca, sapatos, plantas, joelhos — que doarão um sentido ao que internamente é desordem, caos, tabu. Por isso os tempos verbais se confundem, e, mesmo dialogando com alguém morto, fala-se no presente: “(… ) não frequento mais igrejas, o que, para você, deve ser um pecado imperdoável”. No ato da rememoração, o tempo pretérito se transmuta em eterno presente: é contra esse ciclo de repetição que a escrita se insurge, na tentativa de romper a insistência da cena traumática e reescrever, em parte, o passado.

Mesmo que por vezes narre em tom menor as alegrias de uma infância interiorana, da vida entre árvores, passeios de bicicleta e o afeto de um pai presente, a carta é incômoda, porque incômodo é o amor materno. Relata-se a ligação com alguém que muda de humor de repente, desqualifica, rejeita, ofende. Que oferece colo apenas quando a filha adoece, tratando com zelo obsessivo um corpo entumecido por alergias e urticárias. Que envenena as artérias familiares com doses altas de exigências, castigos e sanções. Que olha pelas frestas, transformando os espaços privados em lugar de controle e violação da intimidade. A figura de Zenóbia, tia e mentora da protagonista, surge como contraponto a esse vínculo enfermo, colocando generosas porções de carinho na trajetória cheia de tropeços de Ana Luiza. Sim, ela dá vários passos em falso, talvez como consequência da constante obrigação de se ajoelhar nas muitas penitências impostas pela matriarca.

A despeito do discurso corrente (e falacioso) sobre o caráter incondicional do amor materno, muitas páginas da boa literatura já colocaram o dedo na ferida aberta dos afetos adoecidos. Talvez seja mesmo duro encarar sua existência e derrubar mitos em torno de uma suposta essência da natureza feminina — daí o desconforto causado por narrativas cuja visão da maternidade é amarga. Às vezes não há afeição para dar, mas insanidade.

Também vítima da opressão da sociedade e da religião católica, Matilde não se exime de replicar a gestão severa de restrições à própria filha. A proibição das sonhadas aulas de balé, sob a alegação da pouca vergonha de uma menina abrir as pernas. A vigilância da geografia corporal da filha, cujas transformações físicas lembram à mãe sua própria senectude. A amamentação estendida até os cinco anos de idade, aprisionando ambas em uma dinâmica perversa. O texto é a tentativa de dar um basta a este leite quase obsceno, que envenena mais do que nutre. De modo contundente, ele examina a interação mãe e filha no ponto em que se misturam confusamente pudor e pulsão libidinal: afinal, em que momento o aconchego materno vira vínculo nefasto?

Para não ensandecer é necessário inventariar lembranças, mas também violar segredos e pactos silenciosos. Precisamente aí a fabulação assume um caráter de quase revanche, no instante em que os paradoxos da ficção são levados ao extremo e resta dúvida sobre a matéria narrada. E então surge a trapaça final, pois a ficção — assim como as gavetas — tem fundos falsos e conduz a versões incertas. As fronteiras entre realidade e invenção são tensionadas e estamos de volta ao território instável da linguagem. Quem tem a palavra final pode, enfim, brotar com mais força e viço.

Essa coisa viva
Maria Esther Maciel
Todavia
126 págs.
Animalidades – zooliteratura e os limites do humano
Maria Esther Maciel
Instante
176 págs.
Maria Esther Maciel
Nasceu em Patos de Minas (MG), em 1963. É ficcionista, poeta, editora e ensaísta. Professora titular de literatura comparada da UFMG, atua hoje na Unicamp e publicou, entre outros, Pequena enciclopédia de seres comuns, O livro dos nomes, A vida ao redor e Animalidades: zooliteratura e os limites do humano. Vive em Belo Horizonte (MG).
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho