A fabulação espelha a amizade de sessenta anos do escritor Silviano Santiago com o produtor musical Ezequiel Neves que faleceu em 2010. Em Mil rosas roubadas, há muito para quem souber se deter nas várias tramas que se descortinam na ficção. São muitas as veredas que se apresentam ao leitor, trançadas de maneira hábil e com um sotaque inconfundível. Não é à toa que o escritor mineiro traça o mapa da origem: a Praça Sete de Setembro de Belo Horizonte é o centro desse mundo: donde partem os oito eixos do cruzamento perpendicular das avenidas Amazonas e Afonso Pena e se entrecruzam transversalmente as ruas Carijós e Rio de Janeiro, conforme o planejamento urbano de Aarão Reis no fim do século 19.
Uma das trilhas apresenta a memória urbana, os funcionários, trabalhadores, profissionais liberais se instalando e fundando a capital. Essa metáfora relacionada com o mapa e os percursos históricos da fundação dos bairros da cidade, estendendo-se desse espaço no tempo às histórias mais remotas das minas e capitais brasileiras, formam um arcabouço da memória no qual crescem e estão em processo de formação o narrador e o protagonista, seu amigo dileto. Essa memória é rica em fatos históricos e em intertextos de poesia. É dos primórdios dos anos 1950, do ponto do bonde Calafate, situado na Praça Sete, onde esses dois moços conhecidos de vista do Clube de Cinema têm seu primeiro encontro, marcante devido ao encantamento e a uma resposta inusitada, que a narrativa se espraia ao mundo.
O narrador inicia a história do romance com uma tentativa de tergiversação. Perdia seu biógrafo; aquele para quem durante a vida inteira se ostentara, exibira dados, fotos e entrevistas, almejando um dia contar com a biografia escrita pelo autor que lhe sobreviveria e revelaria a história de ambos, com os detalhes da proximidade e da amizade de tantos anos. Mas ao narrador o destino pregava uma cilada: ele sobrevivia a quem implicitamente incumbira biografar-lhe. Nada mais tinha valor agora, com o amigo moribundo sem que tivesse cumprido a escrita biográfica. Em virtude desse engodo do destino, só lhe restou então, durante visita ao amigo no leito de morte, impor-se a si mesmo a tarefa de criar um gênero literário enigmático, um romance ou documento biográfico sub-reptício que não se deixa deslindar. Através desse artifício, talvez lhe suceda transformar a peça imposta pelo destino, exigir uma virada de jogo representacional e a inversão dos papéis. Que a sonhada biografia, sua própria história, seja contada sim, a qualquer custo, quem quer que seja o autor.
Autoria
Também a Max Brod coube infringir uma decisão do destino. O seu gesto infrator proporcionou acesso à obra de Kafka, que teria sido de outro modo queimada. O historiador e pesquisador experiente cose a ficção Mil rosas roubadas, contendo a biografia do amigo fundida à autobiografia, ora tramando com a linha tênue da imaginação que inventa os fatos vividos pelo biografado, ora com a linha da admiração que idolatra o outro. Mas para isso lança mão de truque escuso e embaça a identidade do autor, do sujeito!
Na escrita do romance, abre-se aqui e acolá veredas por onde luzes e olhares convergem para o outro. São breves interstícios. Como se pretendesse justamente confirmar a intimidade entre os dois, logo o objeto retrocede ofuscado no campo do jogo e avança o sujeito ubíquo, atribuindo a si imortalidade autoral. E os refletores focalizam o narrador.
A transindividualidade voluntariamente destacada perpassa toda a narrativa como um modo de declarar sobretudo a cumplicidade, o afeto. Mil rosas roubadas é uma sutil declaração de amor.
Diálogo
A estrutura dessa história de amor puro e frustrado possui afinidade com a estrutura de As brasas, o próprio narrador alude ao romance do húngaro Sándor Márai na epígrafe de Mil rosas. A relação entre o capitão e o general fora marcada por uma grave suspeita que cindiu de maneira irreparável a amizade. Após o interstício que durou quarenta e um anos, reavivam-se as imagens da infância e da juventude comuns, e reacende-se a expectativa de um diálogo entre os dois, que pode revolver a pátina acumulada sobre o episódio enigmático que acontecera durante a caçada e trazer à tona revelações.
A Mil rosas roubadas, porém, se soma o ardor de uma paixão juvenil, que paulatinamente se torna amizade duradoura e se sela finalmente com a cumplicidade. O romance que se constrói através de memória, imaginação e admiração pelo outro é conduzido pelas frustrantes sensações de bloqueio e de delito advindos do desejo. As epígrafes dos capítulos traduzem as diferenças e contraposições entre os dois personagens. Proust se propõe a sair da mera constatação e a criar algo novo. Jean Cocteau em seus diários de convalescência do vício do ópio incrementa com pitadas visionárias o mero conhecimento da poesia. A rebeldia do rock do The Doors e as melodias melancólicas do jazz de Bessie sublimam com correspondências o delírio e o sofrimento não traduzíveis em forma de comportamento subversivo.
Razão e imaginação igualmente se contrapõem como oximoros e se reportam às escolhas de ambos: enquanto um opta por irreverência, em meio às experimentações radicais das drogas e do rock and roll, o outro escolhe a compenetrada carreira de docente e pesquisador da academia. As preferências transparecem no vestuário, nos hábitos de vida, nos respectivos círculos de amigos e nas ideias. Como não poderia ser de conciliação, o diálogo é prenhe de faíscas.
Biografia
Num rasgo de mea culpa pelo seu procedimento literário que julga pretensioso e sujeito à pena de Talião, o narrador evoca o personagem de André Gide no romance Os subterrâneos do Vaticano, Lafcadio, cujos tormentos pela consciência do crime de assassinato o levam a autoflagelações; evoca também a náusea do triste personagem de Sartre, Roquentin, que ao escrever sobre o Marquês de Rollebon insere na enfadonha pesquisa malbaratada pelas idiossincrasias provincianas a própria biografia. O narrador ao que tudo indica admite a vilania de seu procedimento.
Mas no ato consciente e confesso de fazer convergir no discurso biográfico a concomitância do tom autobiográfico subverte o caráter vilão e não deixa margem à acusação de escaramuça. Paul de Man de qualquer modo afirmou, ao falar de “autobiography as de-facement”, que autobiografia, longe de constituir gênero ou modo, ocorre em certa medida na leitura de qualquer texto, pois seria um equilíbrio entre dois sujeitos que se relacionam num processo de leitura que vem a ser determinada pela complementação e substituição da mútua reflexão. O biógrafo compõe assim uma desbragada conjugação dos fatos que ocorreram com seu biografado e as próprias experiências de vida, tendo em vista que o foco não era um único, mas o comum a dois.
Olhar muzambê
Num idioma dos antigos escravos, muzambê designava o sujeito vigoroso e de alto astral, bem consigo mesmo. Através do estudo sobre as influências de cada um dos cinco sentidos humanos na definição psicológica, o biógrafo enaltece a capacidade de olhar e enxergar que foi determinante na personalidade de seu amigo Zeca. Ninguém saberia imprimir potência equilibrada a todos os sentidos, e a prevalência de um ou outro equivaleria a um traço psicológico singular. Tendo a apurada visão do amigo devotadamente voltada a ele, a investigar em ginga de garimpeiro a pepita flagrada na bateia em plena capital mineira, a itabira, “pedra que brilha” segundo os aimorés, refulge mais ainda, airosa.
A literatura de Silviano Santiago produz essas imagens de pedras que aos poucos abrandam a carga da solidez. O que antes se restringia a dureza e aridez mostra pela incidência das palavras laivos interiores de um brilho especial.
Insubmissão
Com Mil rosas roubadas, essa mistura de memória, ficção e fabulação que se furta às classificações taxonômicas de gênero literário, Silviano Santiago lega um texto provocante e confessional. Dentre sua profícua bibliografia literária, destaco o curioso romance Em liberdade, misto de documento e fabulação sobre certo período da vida da personalidade Graciliano Ramos tornada sua personagem. No ensaísmo teórico-crítico relevo como referência fundamental à reflexão sobre nossa identidade o texto O entre-lugar do discurso latino-americano, escrito originalmente em francês nos anos 70, com o qual o escritor estimula a inteligência brasileira a expressar-se para além da mera apropriação e devoção, num ritual de antropofagia.