Embora publicado em 2017, Machado de Assis, o escritor que nos lê, resultado de tese de livre-docência de Hélio de Seixas Guimarães, poderia muito bem ser incluído entre as obras que serão lançadas neste ano de comemoração dos 110 anos da morte do bruxo do Cosme Velho, uma vez que se trata de trabalho que mostra como a crítica fez emergir, ao longo de várias décadas de recepção da obra machadiana, um escritor que ocupa o panteão de nossa maior glória literária, capaz de ombrear com o que há de melhor na literatura de outros países.
Na ótica de Seixas Guimarães, o escritor foi galgando pouco a pouco os degraus da consagração literária. Tal ascensão “aos saltinhos” deve-se a vários fatores. Um deles e o amadurecimento dos leitores. Outro fator relaciona-se ao aprimoramento dos instrumentos da crítica literária, permitindo que novos horizontes de compreensão da obra machadiana surgissem. Há muitos outros, é claro.
Com respeitável fortuna crítica, o escritor é analisado em Machado de Assis, o escritor que nos lê “na percepção e no entendimento da construção de quatro figuras do autor, em que os estudos críticos são agentes e sintomas de transformações que muitas vezes extrapolam o âmbito literário”. A perspectiva adotada por Guimarães passa pelas teorizações sobre recepção e leitura de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. O objetivo é mostrar como a crítica literária, desde a época de Machado até a mais atual, foi construindo imagens distintas da obra e do escritor.
No primeiro capítulo, Guimarães mostra sobretudo como Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo — contemporâneos do escritor e considerados os três principais críticos da obra machadiana da época — efetuaram a leitura crítica sobre a produção literária do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.
Um de nossos pioneiros na crítica literária, intelectual ligado às ideias científicas, filosóficas e sociológicas que marcaram as últimas décadas do século 19, figura de proa da “escola do Recife” e antimachadiano convicto, Romero caracterizou-se por avaliar “injusta e destrambelhada” a obra de Machado, vendo nela pouca “cor local” e mera imitação de Laurence Sterne, percepção que levaria, pouco tempo depois, alguns estudiosos a buscarem as influências inglesas na literatura machadiana.
Antigo companheiro de Romero, Araripe Júnior também criticou a ausência de representatividade do país na obra machadiana. Porém, o crítico cearense reviu alguns equívocos de suas avaliações ao longo do tempo que acompanhou a produção literária de Machado. Por seu turno, Veríssimo é o único dos três que percebeu a literatura machadiana por um viés diferente, combatendo o critério extremamente nacionalista de Romero na análise de Machado. Além disso, Veríssimo repôs em curso a ideia de certo humorismo presente no escritor e assinalou o suspeito narrador que há em Dom Casmurro, antecipando-se algumas décadas às observações de Helen Caldwell.
Entre a morte de Machado e o modernismo, foi o “critério biográfico presidindo boa parte da produção póstuma” que deu a largada para o estabelecimento do escritor como “mito nacional”, destaca Guimarães no segundo capítulo de seu livro. Todavia, as primeiras hostes modernistas silenciaram sobre o escritor. Apenas Oswald de Andrade, dentro do espírito combativo de 1922, reconheceu a importância de Machado. Só depois do centenário do escritor, em 1939, que um ou outro modernista (Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Aníbal Machado, Marques Rebelo) vai tratar sobre a obra machadiana.
Observa Guimarães que, ciosos de sua singularidade, alguns escritores passaram a sentir-se incomodados ao serem comparados a Machado. Um deles foi Lima Barreto, modernista avant la lettre, avaliado frequentemente pela crítica sob uma perspectiva que diminuía sua produção literária ao cotejá-la com a de Machado. Outro foi Graciliano Ramos, que “ironizou a mania de se comparar tudo a Machado de Assis, e pelos motivos mais variados — epilepsia, funcionalismo público, horror aos clichês, secura da linguagem”.
Imagem moderna
Entre as décadas de 1930 a 1950, Astrojildo Pereira, Lúcia Miguel Pereira e Augusto Meyer sobressaíram entre outros críticos na consolidação de uma imagem moderna de Machado, contribuindo, ainda que sem intenção, para que o Estado Novo transformasse Machado numa figura emblemática e dela tirasse proveito político.
Os três debruçaram-se sobre a obra machadiana. Pela ótica marxista, Astrojildo denunciou as ideologias e procurou mostrar “os nexos entre a obra machadiana e a realidade social brasileira”, ao passo que Lúcia e Augusto Meyer valeram-se da psicologia e da psicanálise para estudarem a literatura do escritor. Ao relacionar biografia e obra, Lúcia assinalou o “ciclo da ambição” de quase todas as heroínas dos quatro primeiros romances de Machado. Segundo a crítica e escritora, Machado “teria disfarçado questões e dilemas vividos por ele em sua trajetória social, marcada pela origem pobre” refletindo-se nessas figuras femininas. Augusto, por sua vez, centrou-se na análise do autor, não da pessoa, estabelecendo a intertextualidade da obra machadiana com Nietzsche, Pirandello e Doistoiévski. Demais, enfatizou o pessimismo de Machado, algo que Alcides Maya já detectara em 1912.
Em 1939, no centenário de nascimento de Machado, o Estado Novo — sempre à procura de heróis nacionais e aproveitando o biografismo de parte da crítica — deu a demão necessária para a glorificação do escritor, salientando a ascensão do menino pobre desde o Morro do Livramento até o mundo da respeitabilidade e da consagração da Academia Brasileira de Letras, tudo obtido graças a seus esforços — endossando a cartilha trabalhista propagada pelo governo de Getúlio Vargas.
No terceiro capítulo do livro, Guimarães destaca a radical mudança de leitura de Dom Casmurro com a nova interpretação dada pela professora americana Hellen Caldwell. Em 1960, ela publicou The brazilian Othello of Machado de Assis, que punha em xeque a leitura até então feita na qual Capitu figurava como uma mulher adúltera. Isoladamente, um e outro haviam feito tais observações. Na ótica de Caldwell, o cerne do romance estava no ciúme doentio de Bento Santiago, levando-o a narrar os fatos de forma deturpada com o fito de acusar a mulher de traição.
As observações de Caldwell provocaram incômodos na crítica nacional, que não fora capaz de efetuar tal leitura do já então consagrado Machado. Esse mal-estar atrasou a tradução do livro de Caldwell para o português em mais de quarenta anos. À época da publicação, algumas farpas foram lançadas indiretamente contra a americana por Eugênio Gomes e Wilson Martins, figuras importantes da crítica brasileira de então.
Mas a nova interpretação do romance de Machado — ainda que feita por uma estrangeira — ecoou entre alguns estudiosos no Brasil dos idos de 1960. Foi o caso, por exemplo, de Silviano Santiago, que dialogou com as ideias de Caldwell. Do mal-estar e da celeuma que a aproximação de Bento Santiago e Otelo provocou, inegavelmente a leitura e as traduções de obras machadianas pela própria Caldwell e por outros serviram para internacionalizar o escritor.
Guimarães aponta no último capítulo de seu livro que, entre 1970 e 1980, avolumam-se a crítica à obra de Machado e houve enfim um consenso de ser ele um escritor realista. Neste período, destacaram-se as interpretações de Roberto Schwarz, John Gledson e Alfredo Bosi. Os três passaram a dar as cartas na leitura de Machado, ainda que muitas vezes divergindo entre si na maneira de compreender a obra do escritor.
A partir de 1990, surgem algumas polêmicas entre a crítica nacional e a de fora. Uma delas foi o questionamento de Abel Barros Baptista à interpretação de Caldwell, que fornecera subsídios para Silviano Santiago, Gledson e Schwarz. A outra ocorreu em 2002, quando o professor da Universidade de Princeton Michael Wood questionou a explicação de Schwarz sobre as “diferenças entre as obras das chamadas primeira e segunda fases”. Wood pôs em xeque a ideia de que apenas a crítica nacional, como queria Schwarz, fosse capaz de compreender Machado. Em 2009, Baptista publicou um ensaio observando que a controvérsia entre o americano e o brasileiro punha em relevo a hostilidade de certa parcela da crítica nacional, capitaneada por Schwarz, contra as interpretações sobre Machado feitas no exterior.
Em suma, Machado de Assis, o escritor que nos lê permite aos leitores um passeio pelas variadas interpretações da crítica sobre a obra do escritor ao longo de cerca de cem anos. Didaticamente, Guimarães mostra desde o autor de obras desprezadas pelos seus contemporâneos por conta da ausência da “paisagem, cor local, descrição, enredo movimentado etc.” até o escritor cuja grandeza — fazendo coro às observações feitas por Antonio Candido em Esquema de Machado de Assis — foi ultrapassar seu tempo e antecipar algumas temáticas que seriam empregadas por grandes autores que vieram depois como Pirandello, Camus, Sartre, Kafka, entre outros.
Machado de Assis, o escritor que nos lê
Hélio de Seixas Guimarães
Unesp
310 págs.