Intérprete da alma rústica

Quem for à antiga rua Grande, em São Luís do Maranhão, encontrará uma tímida placa no canto de um sobrado hoje transformado em loja de roupas
Catullo da Paixão Cearense, autor de “O lenhador”
01/03/2012

Quem for à antiga rua Grande, em São Luís do Maranhão, encontrará uma tímida placa no canto de um sobrado hoje transformado em loja de roupas, na qual se podem ler estas palavras: “Nesta casa nasceu, a 8-10-1863, Catullo da Paixão Cearense, o grande poeta que soube interpretar, em versos bem representativos da intelligencia maranhense, a alma popular brasileira”. A placa traz a data de 11 de janeiro de 1940; o homenageado morreria seis anos depois, no Rio de Janeiro. Catullo morreu pobre, mas não esquecido: em seu “Palácio Choupanal”, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro, recebia sinceros admiradores e célebres amigos — inclusive estrangeiros, como Salvador Rueda, o poeta espanhol, e Alfonso Ortiz Tirado, o mexicano que logrou alcançar sucesso como tenor (chegou a viajar por todo o continente americano e por alguns países da Europa como “embaixador lírico da canção mexicana”) e cirurgião (foi médico de Frida Kahlo).

Hoje, para a vasta maioria das pessoas, o autor de Luar do sertão é apenas isto: o compositor — único, segundo ele mesmo, embora hoje se reconheça ter sido João Pernambuco o autor da melodia — de uma das obras-primas do cancioneiro popular brasileiro; música magistralmente registrada por Luiz Gonzaga e Tonico e Tinoco, cantada por Marlene Dietrich quando se apresentou no Brasil, em 1959, e incessantemente destroçada por incontáveis “artistas”, supostamente populares, mas sempre a serviço da indústria cultural. Catullo talvez tenha sido quem mais lutou contra o seu próprio esquecimento. Notoriamente vaidoso, no fim da vida passou a exigir o reconhecimento público. Em 1940, por iniciativa sua foi lançada a campanha O tostão do povo, que lhe renderia um busto no jardim do Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal (o palácio foi estupidamente demolido em 1976; em seu lugar, há hoje uma praça, onde permanece o busto). Seu enterro, em 1946, foi acompanhado por uma multidão. Ainda assim, não foi poupado pela avara memória brasileira.

Se Catullo foi uma figura importantíssima para a música popular nacional, subindo de violão em punho as escadarias do Palácio do Catete para apresentar-se a Nilo Peçanha e a Hermes da Fonseca — como observou Câmara Cascudo, foi ele o responsável por transformar em instrumento clássico e prestigiado o que antes era denúncia de depravação artística —, produziu uma obra reconhecida também pelo mundo literário, ao menos em sua época. Mário de Andrade, em crônica no Diário Nacional, chegou a considerá-lo “o maior criador de imagens da poesia brasileira”; Carlos Drummond de Andrade, escrevendo sob pseudônimo (O observador literário), qualificou-o como “grande poeta do povo, intérprete da alma rústica dos sertões brasileiros”, em crônica publicada na revista Euclydes. Talvez Drummond só o tenha afirmado com essas palavras por havê-lo feito sob pseudônimo; conhecedor da obra de um poeta como Leandro Gomes de Barros, certamente sabia que Catullo fazia parte de outra família — a dos poetas que dialogam com a tradição literária, mesclando-a contudo com temas e formas populares, à maneira do que mais recentemente fez Patativa do Assaré. Ressaltou-o Bastos Tigre, ao destacar que o “poeta do sertão” era conhecedor da poesia de Victor Hugo e de Nicolau Tolentino.

Igualmente revelador é o fato de a nova edição de O lenhador, organizada por Francisco Marques, trazer duas versões do poema: a primeira, publicada na “língua do sertão” (como presente em seu primeiro volume de poemas, Meu sertão, de 1918); a segunda, em português formal (como publicada em Poemas bravios, de 1921). Para além das mudanças ortográficas e gramaticais, das quais derivam variantes necessárias para a preservação da estrutura métrica, Catullo altera o desfecho da obra. A primeira versão se encerra quando o lenhador malvado, que sem compaixão derrubava árvores centenárias, arrepende-se após o fantástico episódio em que dele se vinga a natureza — com troncos vertendo sangue ou transformando-se em braços —, convertendo-se finalmente no jardineiro querido pelas plantas: “E agora, quando passava/ junto das árvre, cantando,/ cheio d’água, carregando/ o seu véio regadô,/ as árvre, filiz, contente,/ que o lenhadô perduava,/ no jardinêro atirava/ as suas parma de frô!”. A segunda versão ganha mais algumas estrofes, encerrando-se com esta: “Quem, hoje, por alta noite,/ nas horas de mais ‘quebrando’,/ passa pelo Campo Santo,/ velho, triste e abandonado,/ vê um vulto pervagando/ de campa em campa, regando/ as flores do cemitério,/ onde ele foi enterrado”. Pode-se entrever nessa ênfase no episódio post mortem um elemento vinculante do sentido moral do poema à estética ultra-romântica, o que ressaltaria sua dimensão “literária”.

A poesia de Catullo, como aliás muitas de suas músicas, pode causar estranhamento à sensibilidade contemporânea — embora isso se aplique mais à vertente devedora da estética parnasiana do que às obras “sertanejas”; ainda assim, é louvável o esforço para resgatá-la, na medida em que implica o reconhecimento de um nome de indiscutível importância para a cultura brasileira. O livro de Francisco Marques realiza muito bem essa tarefa, sobretudo pela miscelânea que inclui, trazendo elementos biográficos, comentários diversos e uma pequena antologia. Cuidadosamente editado, com capa dura e ilustrações de Manu Maltez que representam com perfeição o sentido do poema, O lenhador é uma boa apresentação da obra Catullo da Paixão Cearense às novas gerações. Esperemos que Francisco Marques, admirador da obra de Catullo — como deixam nítidos os seus comentários presentes na obra —, dê prosseguimento ao resgate da obra desse poeta que, afinal, não escrevia apenas para o povo.

O lenhador
Catullo da Paixão Cearense
Org.: Francisco Marques
Peirópolis
74 págs.
Catullo da Paixão Cearense
Nasceu em São Luís do Maranhão, em 1863. Aos dez anos, foi com a família para os sertões do Ceará; sete anos depois, mudaram-se para o Rio de Janeiro. Após a morte do pai, em 1885, Catullo abraçou a carreira artística, integrando-se ao mundo da música e da boemia carioca. Foi parceiro de Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, entre outros. Além de poeta e compositor, Catullo da Paixão Cearense foi dramaturgo (autor de Um boêmio no céu, só montada em 2007, por iniciativa de José Mayer, com direção de Amir Haddad) e editor (editou, pela Livraria do Povo, modinhas em folhetos de cordel). Morreu em 1946 no Rio de Janeiro.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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