A Editora Hedra acaba de plantar uma nova coleção. Intitula-se a preguiça editorial. A diagramação é simples e elegante, bem como a estilização do simpático mamífero, patrono da coleção, pendurado no canto direito inferior de cada capa. A preguiça, portanto, não está naquela parte do trabalho editorial que é a seleção dos textos a publicar, nem na concepção do livro propriamente dita. Ela se confina aos aspectos, digamos, burocráticos ou comerciais do livro. O leitor dará de imediato pela falta de algo nesses volumes: o índice. Mas logo perceberá que há mais coisas faltando, porque na verdade os livros estão despojados de tudo que não seja título e miolo: as orelhas estão em branco como a quarta capa, não há página de rosto, nem ficha catalográfica, muito menos colofão. Só não falta, dentre as marcas referentes à constituição da mercadoria e ao registro da propriedade intelectual, o código de barras com o número do ISBN. O que é um sinal de que a preguiça se deteve prudentemente ante esse último limite comercial.
Os três primeiros títulos têm interesse, pelo que neles se nota de esforço de construção de uma linguagem à margem dos caminhos dominantes na lírica contemporânea brasileira. Mas não configuram um conjunto coerente, uma tendência. Pelo contrário, são trabalhos muito diferentes entre si, que deixam ver que o princípio da coleção não deve ser mais restrito do que, por exemplo, a idade dos autores ou o fato de serem jovens e quase inéditos.
Azul escuro, de Alexandre Barbosa de Souza, é o volume mais despojado. A ponto de o título parecer apenas a designação da cor da capa. E o conjunto dos poemas, pela enorme variação de registro e realização, faz com que, como livro, este seja o menos uniforme dos três. O que não quer dizer, longe disso, que seja o menos interessante.
Há algo de tocante nesse livro: um poeta que fala com o coração nas mãos. Mas as principais tendências de sua poesia não parecem ainda conjugadas, e por isso a leitura dá idéia de uma trança de vários elementos, em que o fio principal se mistura, meio a esmo, com vários outros, de maior ou menor importância.
Assim, é verdade que o tom intimista freqüentemente se dissolve no prosaico, gerando frases banais que parecem cortadas ao acaso: “me assusta/ como ando entre os espinhos/ com dedicação.// Agora vejo/ que visto há dois dias/ a camisa que você abraçou./ Parece que quero/ entrar no mar e não sair,/ mas isto é um desejo todo seu”. Mas é também certo que, em contraponto à dominante confessional, também percorre o livro, nos seus bons momentos, um anseio por concretude que faz lembrar o haicai: “a borboleta/ sob a lua/ encontra sua sombra”. Para haicai, falta o corte interno, a estrutura justaposta que caracteriza o gênero — luz da lua/ a borboleta encontra/ sua sombra —; mas o movimento é o mesmo: a busca da imagem desprovida de anotações ou comentários sentimentais ou edificantes. Talvez por isso os versos mais interessantes do livro são aqueles em que as várias linhas se conjugam. Como estes, no qual uma imagem de gesto solitário ocupa o centro único das atenções: “Do barro se fez/ a terra e a água/ do jarro.// Com a mão direita,/ ergo o jarro/ sobre a mão esquerda.”
Muitas vezes, porém, mesmo nos trechos mais objetivos, uma aparição excessiva do ‘eu’ ou uma inflexão sentimental puxa o poema para baixo, às vezes impedindo que a imagem se fixe inexplicada, cercada apenas do vazio de silêncio que permite a sua livre impregnação afetiva ou simbólica. É o caso do que acaba de ser transcrito, cujo título é Solidão.
O sobrevivente, de Fabrício Corsaletti, mantém um forte sabor de poesia juvenil. A escolha pelos ritmos breves e marcados é o ponto mais saliente, no que diz respeito à forma geral dos poemas. Na construção das frases e imagens, o autor não teme resvalar pela banalidade algo piegas: “os homens confun-/ dem cansaço e paz”, “o menino que fomos/ mantém-se/ fiel a si mesmo”. Já quanto aos temas, a evocação da infância e da primeira adolescência é o que mais marca a leitura. A nostalgia, assim, é a sua cor específica.
Como em Azul escuro, os melhores momentos de O sobrevivente são os de presentificação de uma experiência sensória, como este: Barão do Rio Branco, 805 — Grandes galões transparentes/ todas as cores de detergentes/ sobre a carroceria”. Trata-se, aqui também, de uma celebração da objetividade. Mas dada a conformação nostálgica do volume, mesmo notações apenas sensórias como essa se impõem como evocação ou como instável triunfo de linguagem, cuja limitação em apreender o que já foi se representa na maior parte dos poemas.
No primeiro lote da Preguiça, avulta o livro de Dirceu Villa, Descort. Não porque seja de nível mais uniforme que os outros dois. Ou porque tenha mais coesão como livro, pois apesar da abertura e encerramento, nos quais o poeta se apresenta como prólogo e coro final, a percepção, por conta da oscilação de tom e qualidade, é a de que se trata, como os outros dois, de recolha de um período de aprendizagem.
As ressonâncias poundianas são notáveis em Descort. Nos seus melhores momentos, brilha a mescla típica de alta cultura com registro objetivo baixo. Um outro ponto de interesse desse livro reforça o parentesco com os outros dois: a poesia do quotidiano, da notação objetiva de cenas comuns. Dirceu, porém, nunca tende ao haicai. A intenção alegórica domina mesmo os registros mais diretos, mirando a metalinguagem.
Daí resultam o forte e o fraco dessa poesia. É forte quando produz o riso, pela paródia, pela alusão sarcástica, ou pelo insulto. Como em O espírito de época”, ou em Cinismo, no qual refere “o velho Antoine Candide”. É fraca quando os poemas se tornam meras anotações de leitura ou perdem o tom sentencioso-irônico da extração poundiana, dissolvendo-se no puro registro da vida banal, como em Estratégias: “Dizia que ia ao shopping/ Encontrar as amigas,/ E o caso teve a intromissão de um médico,/ Que preferiu o anonimato”.
Mais tenso, múltiplo e voraz, Descort apresenta uma tensão de mola presa, uma vibração que falta aos outros dois. Os vários caminhos ensaiados neste pequeno volume, se ainda não permitem ver qual será a via principal de construção dessa poesia, ao menos dão o direito de esperar que as suas linhas de força se combinem em breve para construir uma voz de timbre específico.
Num dos poemas mais interessantes do livro, “E mais uma arte poética”, lê-se: “A técnica vem em primeiro lugar;/ a precisão em segundo;/ a potência bem mais tarde —/ — de um livro sobre como jogar tênis”. Eu diria que com este livro se desempenha um rito de passagem: do primeiro momento, o do domínio da técnica, para o segundo. Uma passagem que ainda está em curso.