Dois novos livros de poetas: Estranhas experiências e outros poemas, de Cláudio Willer, de São Paulo, e Estudos de pele, de Floriano Martins, de Fortaleza, Ceará. Os dois poetas são também ensaístas e tradutores. A exemplo do que vêm fazendo alguns poetas dos anos 60, Cláudio Willer também reúne neste volume parte de sua obra de poesia até aqui. Ele explica na abertura de seu livro: “O que vem a seguir reúne seleções de poemas mais recentes, sob o título ‘Estranhas experiências’, dos que saíram em ‘Jardins da provocação’, de 1981, e de ‘Dias circulares’, de 1976, e ‘Anotações para um Apocalipse’, de 1964. Sua gênese está no denso caldo de cultura dos grupos de poetas jovens de São Paulo, por volta de 1960”. Willer lembra: “Costumávamos ler muito em voz alta, uns para os outros, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, o restante do melhor do modernismo de língua portuguesa, dos demais modernismos e do surrealismo e, é claro, a nós mesmos”.
De acordo com Willer, o horizonte literário de então “vinha de Rimbaud para cá, e do Rimbaud final, de ‘Iluminações’ e ‘Uma temporada no inferno’, livros de cabeceira de tantas gerações literárias, no início do século 20 até hoje”. Ele explica ainda que esse foi o período da aproximação à geração beat: “A poesia de Allen Ginsberg parecia falar-nos, falar de nós […] Éramos uma câmara de ecos de poesia, e prosa, e filosofia. Dois ângulos ou duas perspectivas para apreender o que vem a ser liberdade de expressão e criação: as leituras sincrônicas, quase simultâneas, de ‘Os Cantos de Maldoror’ de Lautréamont e de ‘Uivo e Kaddish’ de Ginsberg. Se havia quem escrevesse daquele modo, então tudo era permitido”. Essas considerações se fazem necessárias até mesmo para melhor situar a obra poética de Cláudio Willer.
Já Floriano Martins inicia Estudos de pele sentenciando: “Toda a criação está feita de equívocos, exageros, precárias aproximações da realidade, falsas suspeitas”. O livro de Martins é uma viagem onde cabe até sua leitura como romance. O contos e poemas seguem como uma única narrativa. Pode ser lido também como poesia. Poema em prosa. O que for possível ao olhar e à observação. Um livro denso. Nítido. “Os melhores poemas, no melhor dos casos, são apenas poemas. Por mais que se mova — e por vezes algo se move — a natureza humana aproxima-se de uma pauta maçante de seres inanimados. Talvez tenhamos de considerar a possibilidade de uma era em que não criaremos mais nada. Nos despossuímos tanto do surpreendente que toda a existência já se sente convertida em mera fatalidade”. Floriano Martins explica que os “estudos esboçados” em seu livro mesclam piedade e terror como formas de dedução e sedução dos desígnios e artimanhas da espécie humana.
A narrativa poética de Floriano Martins é das mais intensas da literatura atual deste país. Dália do coração negro é um poema de versos longos que pode ser anotado como o que de melhor se produz na poesia brasileira contemporânea. Isso para citar apenas um exemplo, já que em Estudos de pele, ele mergulha fundo na condição humana sem deixar de ser especialmente poeta quando necessário. É até uma questão de atitude poética, sem muitos discursos e invenções. O poeta, na verdade, cultiva a beleza. Ele conclui num poema “que todas as dores são extensas”. O verso faz parte de Dores do nada que, a exemplo de Dália do coração negro, se reveste da observação mais íntima na vida do homem, em que tudo se despoja para a vida verdadeira de um poema. Some-se a estas observações Um livro de Ângela, no qual a poesia se esgota na feitura do poema com imagens em versos longos, prosa poética de beleza inquestionável (“As páginas não eram propriamente um abismo”).
Essa narrativa poética utilizada dentro do poema também ocorre em relação aos contos envolvidos numa atmosfera de magia. Não é demais dizer que os contos de Estudo de pele são primorosos. Remetem a uma realidade de sonho construída com uma literatura elaborada, palavra por palavra, como se pode ver e sentir em Visita de um lagarto, no qual o sonho e a realidade se confundem, oferecendo uma paisagem que corre entre a luz e a sombra. Mas não apenas o conto citado. Outros fazem deste livro uma obra de se admirar sempre, caso de Nos bolsos da sonâmbula e Lições de abismo, incluindo ainda a última parte do livro, Modelos vivos. Diante de uma literatura assim, pode-se dizer com alívio que nem tudo se perdeu, porque existem ainda autores como Floriano Martins.
Voltando agora a Cláudio Willer. Seu Estranhas experiências e outros poemas é uma afirmação viva de poesia em todos os sentidos, o que é marcante em toda sua obra. Willer considerou “provocações” algumas perguntas da conversa que tivemos. E disse achar “ótimo” ser provocado. Um equívoco. Mas pelas respostas dadas a algumas dessas “provocações” alegadas por Willer, fica-se sabendo, por exemplo, que a chamada Geração 60 de poetas de São Paulo não passa, na verdade, de um pequeno punhado de nomes, uns mais ungidos que outros. A unção revela que a tal Geração (não sei se caberia aqui um G maiúsculo) é simplesmente um grupinho de pessoas separadas entre si por motivos nem sempre ligados à poesia. A expressividade ou a insignificância ocorre de acordo com as regras de um jogo lastimável. As igrejas não são coisas do passado. Um salve-se quem puder deprimente. É por esse motivo que a política literária às vezes provoca náuseas. Romantismo à parte, vamos ao que interessa, que é a poesia, salvo algum engano inesperado.
Cláudio Willer é um poeta atento e dono de fina elaboração do poema. Veja-se, por exemplo, A palavra, de Estranhas experiências: “…poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa/ poesia é o que ainda pretendo escrever/ para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que escrevi”. Nesse poema Willer escreve que “poesia é névoa/ de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar/ poesia é porrada”. Confessa, ainda dentro do poema (se é que cabe esta consideração) que “sempre usei uma linguagem direta/ Prometeu, Fausto/ não quero falar, quero ser dito”. E na narrativa Chegar lá, do mesmo livro, ele sintetiza certamente sua literatura poética: “E agora, quero a palavra reduzida ao simples gesto de agarrar alguma coisa, pura denotação, linguagem-referência, mão estendida apontando para esses pedaços de realidade”. A sinalização deste Estranhas experiências Willer colocou em epígrafe em palavras de Fernando Pessoa: “Não procures nem creias: tudo é oculto”. Ou a parte seis de Poemas para ler em voz alta: ‘É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR”. Ele completa: “…mas não sei/ se não recuaremos/ confundidos diante da visão de nossa crueldade”.
Diante destes Estudos de pele, de Floriano Martins, e Estranhas experiências e outros poemas, de Cláudio Willer, é ainda possível vislumbrar uma paisagem mais clara e honesta em relação à produção de poesia e de prosa neste pobre país de coisas ridículas, tudo muito bem amparado pela política literária que empobrece a literatura e enriquece a mentira. Aqui estão dois exemplos de trabalho e seriedade. E para os bons poetas — como observa Willer em resposta a uma “provocação” — “para o poeta, escrever poesia é inevitável”.