Ano passado, comecei a transcrever os diários de Temístocles Linhares, intelectual paranaense injustamente esquecido. Desde 11 de maio de 2000, tenho me dedicado à leitura e à digitação desses textos, envolvendo-me em um mundo de inteligência, sensibilidade e beleza. Todo esse prazeroso trabalho faz parte da importante iniciativa da Imprensa Oficial do Paraná que, desde dezembro de 1999, vem editando a coleção Brasil Diferente, projeto com a finalidade de recuperar a memória do Estado por meio da publicação de estudos históricos, obras de ficção, poesia etc. E Linhares é parte essencial nesse regaste.
Temístocles Linhares (1905-1993) começou a escrever seu diário em 1957, aos 52 anos — momento em que já era maduro intelectualmente. Ele manteve esse projeto por mais de três décadas, fazendo dessas páginas um espaço para reflexão. No entanto, por mais que tentasse, a rotina em Curitiba absorvia seu tempo, não lhe permitindo dedicação diária. Linhares dava expediente no Instituto Nacional do Mate, lecionava literatura na Faculdade de Filosofia, além de ter devotado grande parte da vida à leitura, ao exercício da crítica literária (publicando seus artigos no jornal O Estado de S. Paulo) e a escrever livros que se revelam cada vez mais importantes, como Paraná vivo, História econômica do mate, Introdução ao mundo do romance etc.
Como gostava de viajar, e sempre que podia viajava — sobretudo em direção do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Balneário Camboriú —, ele preencheu a maior parte das páginas de seus diários fora de Curitiba. Apesar de prestar atenção na paisagem e nos detalhes urbanísticos das cidades, Linhares procurava entender o que movia as pessoas. Em julho de 1963, por exemplo, analisou o comportamento dos cariocas diante da conjuntura econômica da época: “Não posso compreender como vive a maioria da população desta cidade recebendo salários tão baixos. No entanto, o carioca atravessa essas agruras todas com bom humor. É certo que este bom humor é mais aparência, pois, no fundo, o carioca é inimigo do gênero humano. Nada solidário, sem o mínimo espírito de colaboração, ele disfarça o seu amargor com o riso e a graça, às vezes bastante grosseiros.” E, logo em seguida, faz uma declaração de amor à cidade que tanto amava: “Deixo o Rio, após esta temporada, como sempre acontece, com saudade. Há realmente algo de maravilhoso em sua fisionomia, ou antes em sua alma. A verdade é que considero o Rio uma cidade também minha. Ela não é só dos cariocas, mas de todos os brasileiros.”
Nessas viagens ao Rio e a São Paulo, além de recarregar as baterias — seja descansando, lendo, refletindo e observando a “fauna humana” —, Linhares visitava seus amigos, muitos deles escritores — ao lado de quem vivia horas de prazer e muita prosa. Entre seus principais interlocutores, figuravam Décio de Almeida Prado, Lúcia Miguel Pereira, Octavio Tarquínio de Sousa, Adonias Filho, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Autran Dourado, José Olympio, entre outros. Em Curitiba, o número de pessoas gabaritadas intelectualmente era reduzidíssimo, como comprova um trecho do diário — da década de 60 — em que ele fala do cotidiano: “Aulas e mais aulas, leituras de livros, artigos para jornal — eis o que me enche os dias, alternados durante a semana por uma ou duas idas ao cinema, sem convívio com ninguém, a não ser ligeiros contatos com Dalton Trevisan e Wilson Martins, os únicos escritores com quem me encontro nesta Curitiba, chamada de cidade universitária.” Talvez a ausência de pessoas com quem pudesse estabelecer um diálogo intelectual em sua cidade tenha sido um dos motivos que o levou a escrever, e a manter, o diário.
Por outro lado, o diário também ajudou o intelectual paranaense a enfrentar, e a superar, alguns problemas. O mais grave deles, profissionalmente falando, aconteceu no final da década de 50. Na ocasião, o senhor Homero de Barros mutilou trechos de livros do escritor espanhol Galdós, na biblioteca da Faculdade de Filosofia, por considerar as passagens, por ele destruídas, imorais. O incidente atormentou Temístocles Linhares por vários meses, tanto que ele encheu páginas e mais páginas de seu diário comentando o episódio — chamado de “Caso Galdós” — que ganhou repercussão na imprensa nacional, sobretudo nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo e na revista Cruzeiro.
Temístocles Linhares foi feliz e acertou em cheio ao fazer previsões a respeito do destino de alguns escritores. Em 1959, por exemplo, ele saudou a estréia literária de um amigo, que se tornaria conhecido como o “Vampiro de Curitiba”: “Finalmente apareceu o livro de Dalton Trevisan Novelas nada exemplares, em edição bem cuidada e de ótima apresentação. O livro é muito bom, tem um clima e uma densidade próprios que vão ao dramático. Está bem escrito, os diálogos são bem expressivos de nossa linguagem falada, os contos têm estrutura e os seus problemas são resolvidos.” Dois anos depois, também foi certeiro ao opinar sobre uma debutante literária, que posteriormente estaria à frente da Academia Brasileira de Letras, e que hoje leciona no estrangeiro: Nélida Piñon. “Ontem, à noite, na casa de Maria Alice Barroso, fiquei conhecendo uma nova escritora nacional que, pessoalmente, me impressionou bastante pela sua discrição e inteligência. Maria Alice tem fé na sua seriedade, no seu futuro e também no livro que acabou de publicar agora sob o título de Guia mapa de Gabriel arcanjo. No entanto, o que quero dizer é que Nélida Piñon me pareceu, alguém em quem podemos confiar, sem causar decepções futuras.”
A passagem dos anos, talvez a lei do menor esforço, fez Temístocles Linhares desiludir-se com o ser humano. Ao longo do diário, ele aponta diversos fatos que o deprimiam, como, por exemplo, a falta de interesse pela leitura por parte de seus alunos, ou as dificuldades para editar uma obra e, ao conseguir publicá-la, ter de suportar o descaso dos jornalistas, que sequer folheavam as páginas do livro e enchiam laudas e mais laudas sem ter a menor noção do assunto. Mas isto não quer dizer que Linhares tenha feito do diário um muro de lamentações. Em Diário de Um Crítico também encontramos um panorama da situação econômica, política e cultural do Brasil e do Paraná. Apesar de prestar atenção em tudo o que se editava no país, e no mundo, muitas vezes antecipando no diário o que iria escrever em sua coluna de crítica literária — a exemplo do que aconteceu ao ler, em abril de 1959, o romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso —, também voltava o olhar para as atitudes do governo. Ele passou o mês de julho de 1964 no Rio de Janeiro, e escreveu diariamente sobre o golpe, tendo deixado uma importante análise sobre o assunto.
Enfim, o diário revela que Temístocles Linhares foi um excelente leitor (um observador atento) que sabia articular com extrema perícia as idéias, e que tinha verdadeira paixão pela discussão. Tudo era motivo para reflexão. Se fosse ao cinema ou ao teatro, posteriormente, escreveria algo a respeito. Da mesma maneira que tanto uma cena vivida em sala de aula quanto um comentário feito em dada reunião familiar transformava-se em matéria-prima para as suas páginas íntimas. É preciso ressaltar que ele tinha alguns temas dos quais tratava constantemente: Linhares sempre dava exemplos da influência do clima no comportamento humano, acreditava que o homem que escreve tem necessidade de ócio, mas reprovava aqueles escritores que faziam vida literária (badalação, autopromoção e bate-papo) em vez de tomar a atitude que mais importa, no que diz respeito à literatura, que é, justa e obviamente, escrever.
Uma das maiores dúvidas do autor era saber se esses diários seriam publicados. Afinal, de 1957 a 1990, ele preencheu 20 cadernos, que foram encontrados em Montevidéu, local em que atualmente reside sua segunda esposa. E foi o acaso, ou a conjuntura política (afinal, para os que ainda insistem em ser apolíticos, tudo é política), que fez com que o projeto secreto de Temístocles Linhares virasse realidade. O maior responsável por essa descoberta é Wilson Martins que, além de ter sido amigo de Linhares, está envolvido no projeto, auxiliando a decifrar a caligrafia e a estabelecer o nome de pessoas e livros citados. E, coincidência ou não, o Diário de Um Crítico — Volume I, escrito entre 1957 e 1963, saiu da gráfica (pronto) a 11 de maio de 2001, exatamente um ano após o início da empreitada. Acaso, destino, coincidência — seja lá o nome que isso tenha — até o fim do ano devem sair os outros sete volumes, dando um retrato de corpo inteiro de um dos mais importantes pensadores brasileiros — um intelectual do tempo perdido do mate.