Insossa rebeldia

Para sorte de quem se aventurar, "Vida de gato", de Clarah Averbuck, tem apenas 118 páginas
Clarah carrega consigo uma metralhadora, pronta a atirar em quem quer que seja por qualquer motivo
01/11/2004

A gaúcha Clarah Averbuck, radicada em São Paulo, ainda aspirante à escritora, lançou seu primeiro livro, Máquina de pinball, em 2002, tão esperado por seus já sequiosos leitores. Fez prosélitos desde o CardosOnline, um fanzine eletrônico gaúcho que disseminava a produção literária de seus colaboradores para infinitos assinantes. De lá, surgiram nomes expressivos da literatura contemporânea, como, por exemplo, Daniel Galera e Daniel Pellizzari, ambos idealizadores do selo Livros do Mal; e mesmo Clarah.

Sua estréia na literatura foi surpreendente, e mais surpreendente ainda a negociação dos direitos de seu livro de estréia para o cinema, comprados por Murilo Salles. Máquina de pinball ainda foi adaptado para o teatro e o espetáculo montado por Antônio Abujamra. Sucesso total.

Depois disso, em 2003, Clarah publica Das coisas esquecidas atrás da estante, que igualmente reverbera na cena literária pop, se é que isso existia antes dela. Esse volume se ocupa de trazer uma compilação dos melhores momentos da escritora em seu blog brazileira!preta (sic), além de outros tantos escritos de origens diversas.

Ao longo do tempo, Clarah só fez aumentar a horda de seguidores, marcando com firmeza seu nome na lista dos escritores pop-junkies da literatura brasileira. No Perhappiness deste ano, realizado pela Fundação Cultural de Curitiba, evento literário que agregou escritores, leitores, curiosos e chatos de todo gênero, Clarah foi uma das convidadas, e esclareceu para quem ainda tinha dúvidas porque é capaz de despertar tantas emoções. Sua figura por si só chama a atenção, não menos, porém, que seu comportamento. Sempre transgressora, Clarah não poupa palavras de baixo calão, bebe e fuma sem parar e carrega consigo uma metralhadora, pronta a atirar em quem quer que seja por qualquer motivo. Dá de ombros para qualquer coisa que não seja ela própria. Há quem admire sua audácia e coragem. Outros, por outro lado, apenas riem de sua pueril rebeldia.

Mantendo a regularidade de um livro por ano, Clarah comprova sua compulsão pelo ato de escrever. Porém, em seu último romance, Vida de gato, a escritora gaúcha não faz jus à sua fama, deixando muito a desejar. Isso para dizer pouco. Na verdade, tendo em vista a imensa expectativa que se cria em torno daquela que se intitula talentosa escritora, o livro não passa de uma decepção.

Esclarecendo algumas questões: quando se trata de Clarah Averbuck, antes de qualquer comentário a respeito do seu texto, vale dar uma espiadinha no perfil da autora. Por quê? Simples. Clarah criou uma personagem, Camila, e parece personificá-la em sua própria vida. Ou seria o contrário? Camila parece surgir apenas como um alter ego que Clarah usa para o fazer literário. Pela confusão natural que se esboça, é importante conhecer um pouquinho mais sobre Clarah para emitir qualquer juízo de valor acerca do livro. E se não for bem assim, pelo menos é mais divertido.

Outra: tanto Camila quanto Clarah, ou Clarah por intermédio da Camila, ou as duas, são capazes de declarar como modestamente são escritoras maravilhosas. Em Vida de gato, Camila afirma: “Sou incapaz de trabalhar, completamente incapaz. Me peça um texto e você terá algo bom antes que consiga terminar a frase…”. Isso soa meio prepotente, e, pior, não se verifica na prática. Nariz torcido.

Parece que em Vida de gato a autora se enrola no emaranhado dos pêlos dos felinos, e tudo que consegue é rolar no carpete com dezenas de novelos de lã fofinha.

O problema maior pode ser resumido na falta de argumento criativo. A literatura é por excelência um pulsar violento da linguagem comum embasado na imaginação. A literatura é uma reação da vida cotidiana, é a resposta racional que somos capazes de produzir como meio de protesto, é um grito de liberdade, uma busca por um eco. Pois bem. Sendo assim, é admirável que depois da leitura de Vida de gato não haja qualquer apreensão de sequer uma sementinha ficcional. O leitor fica na constrangedora situação de ladrão do diário da amiga da irmã mais velha. Nem tão mais velha assim: uma adolescente rebeldinha.

Comparando-se o livro com o conteúdo de brazileira!preta, nenhuma novidade. A obra impressa apenas repete aventuras sexuais, noites em claro e uma vida absolutamente desregrada. Se Camila, a protagonista, é mesmo o alter ego da escritora, Clarah, então, parece necessitar da experiência empírica para a produção literária. Difícil seria imaginar como Gabriel García Márquez escreveria Cem anos de solidão, ou Cervantes, Dom Quixote, a partir do modo de criação empírico–averbuckiano. O que seria então de Jorge Luis Borges, Cortázar, Kafka?

Ao longo do texto, a autora faz questão de fazer referências a seus ídolos. Bukowski, Fante e Leminski são citados a torto e a direito. Talvez Camila tenha sido assim batizada em homenagem à amante de Bandini, personagem de Fante. Mas o mais provável é que a influência maior de Fante, nesse ponto em particular, seja a fixação por produzir literatura, mesmo que seja O cachorrinho riu.

Em Vida de gato, assim como em Máquina de pinball, Camila é uma escritora que fica pra lá e pra cá, bebendo o dia inteiro, intercalando uns goles de uísque barato com drogas. Nessa nova aventura, transa com um cara, Antonio, que passa a ser sua obsessão. Depois da diversão, Antonio vai embora para nunca mais voltar — talvez porque não se animasse em voltar para a casa de Camila devido ao desagradável odor que dali recendia, já que “Meu quarto estava um caos, garrafas de vinho, latas de cerveja e cinzeiros virados até onde a vista alcança. (…) Banho. Ele primeiro, enquanto eu tentava separar nossas coisas do lixo”.

Curioso observar a negativa de feminilidade que Camila insiste em pregar. Como se a feminilidade remetesse diretamente à fraqueza ou fosse um grave câncer que necessita ser extirpado. Sem a intenção do achaque que uma carta feminista proporia, vale apenas ressaltar o estilo da escritora. Num dado momento afirma a personagem: “E viva a Courtney Love. Quem fala mal da Courtney é meio tacanho. Desculpe, mas ela é uma puta mulher. Ou era, antes de Hollywood e do silicone. Tem culhão (sic), personalidade e não precisa ser uma bonequinha graciosa para ser bonita” (p. 23). Mais adiante, ao comentar uma decisão importante que tomava Camila, diz: “Estava ali por um motivo e seria macho até o fim mesmo que as luzes tivessem ficado mais claras…” (p. 51). Ter colhão e ser macho são características normalmente atribuídas a espécies do sexo masculino, e não como uma virtude feminina para garantir o título de “puta mulher”. Mas, enfim.

A trama de Vida de gato é pobre. Pode ser resumida a quilos de pitanga choramingados pela mocinha largada e nenhuma reflexão. Assim como nenhuma elaboração de vocabulário, nenhum raciocínio refinado, nenhuma conclusão razoável. Sequer um fluxo de consciência bem costurado. Os parcos diálogos distribuídos ao longo do texto são de uma superficialidade atroz. Aliás, não soam como diálogos, mas como uma construção mal-acabada. Dos males o menor: o texto é deliciosamente curto.

Vida de gato
Clarah Averbuck
Planeta
118 págs.
Guida Fernanda Bittencourt
Rascunho