Dia desses fui convidado pelo Museu Lasar Segall, em São Paulo, para falar sobre as ligações existentes entre fotografia e literatura. A conferência seria apresentada para alunos do curso de fotografia, no intuito de estabelecer um diálogo entre os variados tipos de arte.
Comecei com uma provocação: “Há a máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras. Pois acredito que há palavras, ou descrições, que valem mais de mil imagens”. E citei com exemplo uma frase do conto Carolina, de Edgard Telles Ribeiro: “há crianças que são quase irreais de tão perfeitas”. Pedi para que os presentes imaginassem crianças quase irreais, de tão perfeitas, e caso tivéssemos tempo para tal e ouvíssemos a descrição de cada um para a criança imaginada, teríamos retratos diversos, petizes das mais diferentes idades, raças, cores de cabelos e olhos. Se pensássemos em características abstratas, então, não sairíamos de lá tão cedo, só dando asas ao exercício de composição.
O escritor Edgard Telles Ribeiro é mestre em palavras que cumprem a sina de representar mais de mil imagens. Começou a carreira com o romance O criado-mudo, traduzido para vários idiomas, porém, seus dois livros seguintes, são para mim, suas obras-primas: O livro das pequenas infidelidades — onde está o conto quase irreal de tão perfeito, Carolina — e As larvas azuis da Amazônia, novela em que quatro personagens, em capítulos sucessivos, se revezam numa narrativa reveladora, sempre em primeira pessoa. Depois vieram mais três livros: o consistente romance Branco como o arco-íris, o livro de contos No coração da floresta e mais uma vez um romance, O manuscrito.
Histórias mirabolantes de amores clandestinos, volume recém-lançado pela Record, traz oito narrativas que falam de amores mirabolantes, em muitas delas, vividos por personagens clandestinos. A experiência do autor como diplomata transparece na ambientação confortável das histórias em locais bastante distintos — característica também presente em O livro das pequenas infidelidades (relançado agora pela Record). Os cenários sucedem-se aparentemente díspares, porém dando uma unidade de vitral ao volume, com multicoloridos retalhos vítreos de mundos estrangeiros, que se unem harmoniosamente, quando postos contra o sol da leitura atenta. Então, ressaltam-se azuis e esverdeados, vermelhos vivos e amarelos que cintilam sob a óptica de enredos coesos e personagens repletos de uma verdade que posiciona o leitor, invariavelmente, em um dos pólos dos conflitos (às vezes, em mais de um).
Flor ou doença se passa na Mongólia (inclusive para quem leu o romance de Bernardo Carvalho, percebe ali ecos de reconhecimento de algo completamente alheio ao nosso convívio, porém familiar a ambos os escritores). Além da história surpreendente, que conduz o leitor com elegância, porém com uma sensação de um possível desastre irreversível a qualquer momento, temperado com pitadas generosas de delicadeza, há aqui um questionamento que está também nos personagens de Bernardo: “De que valiam os idiomas que aprendera com diligência na infância e adolescência? De que valiam os ensinamentos garimpados ao longo da vida? De pouco ou nada. Quem sabe residisse aí, na tábula rasa simbolizada pela planície interminável, seu principal trunfo? E por que não? Ao invés de fragilizada, sentia-se fortalecida com sua própria impotência”.
Em outro momento, o conto transita entre o inusitado do exterior e a turbulência dos questionamentos da personagem, surgindo um diálogo com o estranhamento que se espalha por toda a obra de Clarice Lispector: “Seu trem, com o marido reduzido a uma semente, continuava imóvel sobre a travessa. Do lado oposto da mesa, porém um ser de carne e osso a observava intensamente. Como seria fazer amor com um homem de uma perna só?, perguntou-se — espantada com a inconveniência do pensamento”. E mais adiante: “Defrontava-se com a dúvida comum a mulheres que, por uma razão ou outra, teriam o privilégio ou o infortúnio de conhecerem um homem só: como seria…com ele?”.
O mar e Aurora também são ambientados em lugares distantes, a primeira história passa-se nos Andes, num vilarejo há mais de quatro horas de carro de Quito; a segunda , na Guatemala. Os contrastes entre a cidade e o campo, na primeira e a capital de um pequeno país em comparação a lugares tidos como mais ‘civilizados’ ou sofisticados, pontuam as narrativas, porém revelando a cada frase os envolvimentos e situações que justificam o título do livro. Lá, um casamento que lembra os filmes italianos da boa safra; aqui um triângulo amoroso que poderia acontecer em qualquer comunidade urbana do planeta, mais especificamente, mas calcadas em grandes diferenças sociais, em que os encontros se fazem por aproximação de tarefas: o jovem articulado e de origem humilde que se vê diante da bela esposa de um militar de alta patente, ele o professor, ela a aluna, nas aulas de tênis do mais destacado clube do lugar.
Em O mar, o narrador descreve a noiva, filha do motorista da Embaixada onde trabalha: “Seu rosto possuía leves traços europeus. Havia nele uma harmonia de linhas que chegava a ser perturbadora, tal sua fragilidade”. A frase pode servir para descrever todo o livro, há uma fragilidade (sinônimo de delicadeza estilística, engenho de artesão talentoso) e uma perturbadora harmonia, ao mesmo tempo. Após a descrição boquiaberta, completa o narrador: “Um pouco como se vivesse um apogeu na antecâmara do declínio. É efêmera a beleza entre os mais pobres, lembra o poeta. Nos Andes, essa constatação pode ser lancinante”.
Aurora traz uma outra característica bastante marcante do autor: a dúvida. Fica no ar a versão oficial, não há definições inquestionáveis. Há evidências que levam a determinadas conclusões, porém estas não passam de veredictos parciais: a imaginação de uma das personagens pode ser responsável por conclusões precipitadas. Mas há sempre o espaço para um segundo, ou mesmo terceiro caminho. A extremidade solta da corda que para Machado de Assis atava as duas pontas da vida, dá aqui o caráter de imprevisibilidade das ações. Neste mesmo texto, o autor exercita também o seu fino humor:
“Os jogos, sejam eles pacíficos ou violentos, constituem uma invenção adorável dos deuses — e, como tal, são feitos para uma prática que alguma margem deixe à graça e à leveza. No caso específico do tênis, os bons jogadores conquistam nosso respeito pela elegância e variedade de seu estilo, mais do que pela força com que despacham as bolas. Paulo, no entanto, pertencia a uma categoria de homens para quem uma partida de tênis representava uma metáfora do gênero de vida que havia escolhido: era militar. (…) Na época em que nos conhecemos, aprendi mais sobre o casal através das reticências dela do que pelas falas e intervenções de seu marido (…) o que me levava a sentir por Jennifer uma empatia instintiva, algo próximo à solidariedade que prestamos às vítimas inocentes de certos flagelos, sejam eles causados pela natureza ou pela estupidez humana”.
Há ainda no livro Horário nobre, o texto mais incisivo, no que tange a exploração das raias insanas do ciúme e das obsessões humanas; The man I love, em que um pianista, cujas “interpretações tendiam a passar por um filtro schumanniano comum que as tornava muito semelhantes” encanta-se com uma misteriosa egípcia — aqui, pecam um pouco pelo excesso as metáforas às coisas do Egito, porém com momentos altos: “Acumulava, àquela altura, vários fantasmas próprios, alguns ciumentos. Já não teria condições de lidar com os alheios”. Getúlio, texto notável, revela a extinção de determinados níveis de relacionamento social do Rio de Janeiro dos tempos em que ainda era capital da República.
As descrições das personagens, no livro, são também ponto de considerável destaque: “com suas roupas modestas e seu ar atento, os pequenos pacotes que por vezes trazia às mãos (embrulhados com barbante em folhas de jornal), e a distinção única de ser primo em quinto grau de Dolores Duran, Getúlio era um filósofo com alma de dama de companhia”.
Fecham o volume A hora e o tempo, citado pelo poeta Francisco Alvim, na orelha do livro, e O presente. Na quarta capa, um comentário chama a atenção pela autoria: “Edgard Telles Ribeiro é um narrador requintado, capaz de ao mesmo tempo mostrar e insinuar, com um domínio da expressão e uma originalidade de visão que só os bons escritores possuem”.
Que as palavras de Antonio Candido sirvam de convite ao leitor para adentrarem a obra deste autor surpreendente e pouco lido, nesta nossa terra em transe permanente e quase intransponível.