Insondável alma humana

Em “A mulher perdida”, Tim Winton mostra aos leitores o quanto é difícil conhecer o outro
Tim Winton por Nilo
01/11/2009

Será que é realmente possível conhecer profundamente a pessoa com quem se vive, independentemente do tempo que se vive com ela? Pois, ainda que se esteja familiarizado com essa pessoa, existem alguns segredos, alguns aspectos da sua personalidade, que talvez sejam inacessíveis ao parceiro, por melhor que ele ou ela seja. Isso não quer dizer que a pessoa que esconde esses segredos seja má ou desconfie do outro. Pelo contrário, quer dizer apenas que o ser humano é mais profundo do que se imagina, e que é impossível conhecer alguém totalmente. Pelo menos, é assim que o australiano Tim Winton pensa, quando nos traz, no romance A mulher perdida, a história de Fred Scully, Jennifer e sua filha Billie.

O enredo do livro é aparentemente bem simples. No início, vemos apenas Fred Scully chegando ao seu novo lar, um casebre abandonado no centro da Irlanda, e iniciando uma reforma completa para torná-lo habitável. Ao longo da primeira parte do livro, aprendemos que Scully comprou o casebre devido a um pressentimento de sua mulher, Jennifer. Descobrimos que Scully é um homem simples, quase simplório, de sentimentos honestos e de uma capacidade de esquecer-se em prol de sua esposa que beira o irreal. Por ela, eles saíram da Austrália, foram para a Grécia, para Paris, para Londres, ele sempre realizando trabalhos ilegais para sustentar a família e principalmente a esposa, que queria se tornar uma artista. Scully tem uma fé inabalável no amor e na sua relação com Jennifer, e é por ter fé no pressentimento de Jennifer que eles vendem sua casa na Austrália para comprar aquele casebre abandonado na Irlanda.

Lá, ele faz amizade com o carteiro da vila, Peter Keneally. É através dos diálogos com Pete que aprendemos mais sobre a vida de Scully, e sabemos que toda a reforma da casa tem que estar pronta antes da chegada de Jennifer e de Billie, que deve acontecer pouco antes do Natal. Próximo à data prevista, Scully recebe um telegrama de Jennifer, dizendo que chegarão à Irlanda em um domingo. No dia marcado, Scully vai ao aeroporto para encontrar as duas, mas vê apenas a filha Billie sair da sala de embarque, portando um crachá que dizia “menor viajante desacompanhado”. Scully a princípio não entende e, relutante, volta para casa com a filha apenas, tentando imaginar o que aconteceu com Jennifer. Sua filha não diz nada, está muda, e não quer falar sobre o que aconteceu, o que aumenta a angústia de Scully.

A partir desse momento, o que o leitor encontra é ação vertiginosa, ainda que não a ação dos filmes de Hollywood, onde há apenas suor e esforço físico. É ação no bom sentido, o movimento de um personagem desesperado, Scully, tentando juntar os pedaços de uma fé que foi quebrada. Sua esposa não chegou por quê? Sua filha não quer falar por quê? Por que Jennifer, sempre tão metódica e organizada, não escreveu nada, nem um bilhete, para dizer o que estava fazendo? A primeira reação de Scully é investigar que destino Jennifer poderia ter escolhido após ter enviado a filha para encontrar o pai. De todos, ele escolhe a Grécia, onde moraram antes. Na Grécia, tudo dá errado. A filha é atacada por um cachorro, um grande amigo tem um destino trágico e Scully não consegue entender o que todos lhe dizem: “Ela te largou, vocês não combinam, aceite isso e vá viver”. Da Grécia para a Itália, dali para Paris e para Amsterdã, Scully vai afundando em um desespero que o faz perder a cabeça. Ao longo do livro, a narrativa de Winton vai mudando seu foco do homem desesperado para a menina que amadurece prematuramente e acaba sendo a salvação do pai.

Pai Quasímodo
Felizmente, ou infelizmente para quem gosta de explicação para tudo, Winton não diz o que fez Jennifer abandonar a filha e o marido. Sabemos um pouco da personalidade dela através do que contam os outros personagens, mas, em nenhum momento, Billie conta o que aconteceu no vôo da Austrália para Londres e depois para a Irlanda. Tudo o que vemos é um homem simplório que luta desesperadamente por algum sentido. Chegamos até a ficar com raiva dele por negligenciar a filha em prol de sua busca, por ele não querer ver o que aconteceu e aceitar de alguma maneira a desgraça. Não, ele é um brutamontes muito parecido com Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame, que é como sua filha o vê, por conta de uma feia cicatriz no rosto. Sem entender as nuances do pensamento humano, Scully acha que as coisas ou são ou não são, ele não admite que talvez possam ser. E quando sentimos raiva de um protagonista, pode ter certeza de que o livro é bom.

Sem fazer nenhum malabarismo estilístico, Winton consegue escrever um romance poderoso, de grudar o leitor às suas páginas e praticamente impedi-lo de largar o livro antes do fim. Ao colocar personagens fictícios com sentimentos muito reais em lugares que existem de verdade, a vida de Scully, Jennifer, Billie e dos outros coadjuvantes ganha realidade e, em alguns momentos, achamos até que os personagens existem e são nossos conhecidos, ou ao menos pessoas que poderíamos ter conhecido. Winton também consegue dosar o onírico em seu romance, e eventualmente fica até um pouco deslocado quando ele aparece, algo que não parece estar muito bem encaixado na trama, como no caso do grupo de cavaleiros que ocupa o castelo abandonado vizinho a seu casebre em determinada noite. É algo tão lírico, tão fora do tormento que é a mente de Scully, que nos causa estranheza. Mas ela passa logo, e Scully e sua teimosia logo nos reconquistam.

Outro ponto interessante é a transição de Scully para Billie como a personagem principal do romance. A transição é feita de maneira ponderada e vamos nos acostumando a ela, sabendo que enquanto o pai perde a cabeça, a filha acaba sendo a âncora que deve puxá-lo para o mundo real. E só no fim do livro percebemos que Pete-carteiro, personagem que fica praticamente abandonado na trama enquanto Scully e Billie caçam uma Jennifer que não quer ser encontrada, é um porto seguro para o australiano simplório. Dois homens simplórios, com poucos ou nenhum sonho ou ambição, que se encontram e se completam, cada um com suas dificuldades.

Além disso, Winton não abre muito o jogo dos sentimentos de seus personagens. Ficamos pedindo para o autor nos dizer porque Jennifer não apareceu na Irlanda. Ficamos implorando para que ele faça Scully abrir os olhos e deixar de ser trouxa. Queremos muito, em algum momento, ouvir ou ver Jennifer, e não ouvi-la pelos pensamentos de Scully ou vê-la através das fotos e das lembranças de outras pessoas. Tudo isso deixaria as coisas mais claras, mas Winton não faz concessões, e nós leitores temos que trabalhar para poder reconstruir os pedaços que estão apenas intuídos, mas não presentes. Por tudo isso, é um grande romance, que mostra uma vitalidade enorme e as infinitas possibilidades da escrita e da alma humana.

A mulher perdida
Tim Winton
Trad.: Juliana Lemos
Argumento
444 págs.
Tim Winton
Nasceu em Perth, na Austrália, em 1960. Morou na Itália, na França, na Irlanda e na Grécia, mas atualmente vive em Fremantle, perto de Perth, com a esposa e os três filhos. Sua carreira literária começou em 1981, com o romance An Open Swimmer. Também é autor de Shallows, Cloudstreet, Dirt Music e Fôlego.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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