Insight: Machado de Assis

Despersonalizando-se, o Bruxo do Cosme Velho fez de si um composto das personalidades de Sterne, Swift, Diderot e Poe
Machado de Assis
01/07/2005

O fato de Machado de Assis ser considerado nosso maior escritor sempre me intrigou: mulato de origem humilde, gago, epilético, com problemas de visão, nunca um talento encontrou, em nossa terra, maiores desafios para realizar-se; mas é sobretudo dessas condições adversas que provém sua estatura de gigante. É sabido que não foi um gênio criador, no sentido imaginativo do termo; no entanto, logrou, como ninguém — negando-se como criatura humana — introjetar e amalgamar a influência daqueles escritores europeus que desejaria ter sido. Despersonalizando-se, fez-se um composto híbrido de personalidades como Sterne, Swift, Merimée, Xavier de Maistre, Diderot e outros.

Sua grande invenção foi inventar-se escritor — personagem de todos esses, materializando-se num estilo que é, ao mesmo tempo, o somatório dos reagentes inspiradores, e, acima de tudo, um novo produto, com características absolutamente próprias. Pede emprestados os elementos e fabrica a substância. No catalisador dessa reação química é que está sua força genial; com o bom gosto de sintetizar palavras, armá-las elegantemente em frases, transpor os caracteres estrangeiros para o seu meio, encadear os episódios, ordenar o texto, selecionar o assunto e os tipos, manter a narrativa dentro de um sistema lógico autônomo, Machado provou possuir uma enzima mimética altamente refinada. Em linguagem moderna, diríamos que sua mente era dotada de um mecanismo semelhante ao de um computador analógico de geração mais avançada que os de sua terra.

Aí está a fórmula inconsciente que ele encontrou para iludir e sublimar todos aqueles estigmas indesejáveis. É claro que o fenômeno é ainda mais complexo, e, para explicá-lo plenamente, gostaríamos de lembrar que a inteligência de Machado contava também, para alimentar sua qualidade criadora, com um forte caráter anal-sádico e poderoso superego; daí a limpeza, a ordem, a síntese e elegância do seu estilo ático (terminou seus dias aprendendo grego). De resto, sabemos que retratou, e não por acaso, a sociedade e o meio ambiente em que gravitavam os principais personagens de seus modelos estrangeiros, encontrando, assim, a equivalência de um mundo encantado tão próprio à negação de suas raízes.

O sincretismo racial favoreceu o sincretismo estilístico. O artifício psicológico se assemelha ao de Fernando Pessoa, mas a solução foi inversa e menos visível; enquanto Pessoa despersonalizava-se, desintegrando-se em diversos heterônimos, Machado despersonalizava-se, atomizando-se em um só homônimo. Dois gênios, dois mecanismos: Pessoa resolveu-se através de uma identificação projetiva e Machado, de uma identificação introjetiva.

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É revelador e pueril ver o jovem Machado verberar, invejosamente, o bem-sucedido Eça de Queirós, em sua Crítica, denunciando a influência de uma obra de Zola no Crime do padre Amaro, e da Eugênia Grandet, de Balzac, sobre O primo Basílio, ambos estréias de sucesso nas letras portuguesas. Se seguirmos os paralelos de aproximação que ele tece, em seu artigo, sobre as duas obras, temos a impressão de um mágico ou inventor que se despeitou de outro, por ter aquele revelado à humanidade, com antecedência, o truque que ele tinha em mente; pois basta ver em seus contos e romances posteriores o sestro de interromper a narrativa para conversar com o leitor, bem como os capítulos curtos com títulos longos e extravagantes, para nos sentirmos diante da Sentimental journey de Sterne, isso sem falar no ainda não apontado paralelo entre O alienista e um conto de Poe, muito anterior, O processo do dr. Alcatrão e do professor Pena (título da tradução), em que dois especialistas visitam um manicômio e dialogam, durante o jantar, com um grupo de médicos dirigentes do mesmo; só que o diálogo, por parte dos últimos desenrola-se em rematado nonsense (como as falas de Simão Bacamarte). Ao fim, descobre-se que os loucos empreenderam um motim e trancafiaram os verdadeiros doutores, assumindo de empréstimo o seu papel.

Na mesma Crítica, num panorama sobre a literatura brasileira, intitulada Instinto de Nacionalidade, escrito especialmente para uma Folha de Nova York, Machado afirma que o verdadeiro escritor nacional não se realiza colocando nos romances os elementos nitidamente locais; em troca, um autor brasileiro pode consagrar-se usando métodos de análise e estilo alienígenas, desde que mantenha como décor um discreto tom regional e logre transpor, adequadamente, os equivalentes estrangeiros ao nosso meio; mesmo porque, segundo ele, a sociedade brasileira da época macaqueava a mentalidade e os hábitos europeus.

Eis aí os ingredientes que Machado, mais tarde, veio a usar com pleno êxito, para transformar-se em nosso maior homem de letras.

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Já pensaram em Machado lépido, moleque, assoviando e cabriolando, cheio de riso feito Mozart? Pois foi como o senti, agora, relendo suas Memórias póstumas de Brás Cubas; um Machado carioca, light, distribuindo “piparotes”; em uma palavra, um Machado rococó. O ornamento virtuosístico, inebriado de si mesmo, excessivo, é o grande personagem, o pretexto  para desenvolver o livro; o estilo negaceado, ameaçando o leitor com fintas e falsas pistas, para enveredar por atalhos inesperados, é a diversão de pique a que se entrega Brás Cubas — Machado de Assis — leitor.

Até no truque de narrar depois de morto, é como se entendesse que o tempo é circular: velho — morte — nascimento — criança, isto é, o homem atemporal. Daí o livro, de 1881, ser tão moderno e revolucionário, mormente em relação aos anteriores. Machado largou de vez os amores de moços e moçoilas à Alencar e tomou de empréstimo o Primo Basílio de Eça, que é de 1878, estilizando o adultério deste, embora sem as minúcias do escritor português. Se o tema vem de Eça, o estilo vem de Sterne, mas tudo apropriado e transfigurado por Machado, “formando um terceiro tom, a que chamamos aurora”.

Fico daqui, do século 21, imaginando Machado a ditar para Carolina essa historinha porca; os dois cúmplices, caseiros, sem televisão, inventando as peripécias de uma novela das oito. Mas, para brincar disso, é preciso “não ter filhos, não deixar no mundo o legado de nossa miséria”. Também para quê, se passaram a vida, ele e Carolina, brincando de filho um do outro?

Fernando Fortes

Poeta e prosador, é autor de Tempos e coisas (1958), Arma branca (1979) e O estranho mais próximo (1988), entre outros. Os poemas aqui publicados pertencem ao livro inédito De olho na morte.

Rascunho