Insanidade criativa

Em "Joyce era louco?", Donaldo Schüler aproxima arte e loucura e discute a ligação entre literatura e filosofia
James Joyce lançou “Ulysses” em 1922
30/11/2017

Psicanálise e criação artística é um campo extenso, rico. Apesar de imensamente explorado, mantém-se longe do esgotamento. Exemplos não são raridades, podemos citar de Van Gogh à Janis Joplin, sem esquecer Ana Cristina Cesar, Ernest Hemingway. Arrolei alguns suicidas porque o ato me parece o ápice da loucura, embora muitos o considerem o suprassumo da lucidez.

Ao falarmos em loucura, importante lembrar Nietzsche, cujo colapso mental mereceu várias interpretações na busca por sua origem, hereditariedade, sífilis, trabalho em demasia, consumo de drogas. Tamanho manancial de possíveis causas de sua loucura logo foram identificadas em sua obra como prova de sua perversão e periculosidade de seu pensamento.

Obedecendo às regras, separa-se normalidade e loucura. Foucault aborda essa separação ao citar dois momentos. Um deles diz respeito ao grande internamento no século 17 e no século seguinte a libertação dos loucos acorrentados, por iniciativa do psiquiatra francês Jean-Étienne Esquirol. A partir de então a relação razão/loucura não mais se estabelece, a loucura passa à condição de doença mental e transforma-se em silêncio.

Dito isso, passemos ao motivo deste texto: Joyce era louco?, o título mais recente de Donaldo Schüler, um dos maiores conhecedores da obra de James Joyce, tradutor de Finnegans Wake. O título, no entanto, não é de Donaldo, está no Seminário, de Jacques Lacan, Livro 23. Joyce e Lacan dividem a importância ao longo deste investigativo trabalho de Donaldo.

Um outro aspecto, e na obra de James Joyce, sempre em destaque, diz respeito à linguagem. E aqui cito um outro “louco?”, Walter Benjamin.

Resumindo: toda comunicação de conteúdos espirituais é língua, linguagem, sendo a comunicação pelas palavras apenas um caso particular: o da comunicação humana e do que a fundamenta ou do que se funda sobre ela (a jurisprudência, a poesia). Mas a existência da linguagem estende-se não apenas a todos os domínios de manifestação do espírito humano, ao qual num sentido ou em outro, a língua sempre pertence, mas a absolutamente tudo. Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada que não tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual.

A aproximação entre arte e loucura é uma das abordagens do trabalho, outras duas trazem minuciosa apreciação de significações e temáticas do Ulysses e do Finnegans Wake.

No início de seu ensaio, Donaldo traz à cena As Bacantes, de Eurípides, em que o leitor estabelece contato com a repressão. A perseguição e interdição do culto a Dionísio leva a crimes hediondos. O rei Penteu prende Dionísio nos estábulos do palácio, as Bacantes estraçalham o rei. A seguir Donaldo cita o Elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam, arrola vários criadores, até chegar a Lacan, que estudou a obra de Joyce com extremo afinco.

Conclusão de Lacan: a criatividade de Joyce era resultado da mania. Mania em seu sentido psiquiátrico. Joyce, importante lembrar, não era um maníaco depressivo, o que parece mais próximo de Virginia Wolff. Mas quem era louco? James Joyce pessoa ou James Joyce autor?

Mas o trabalho tem como objeto a função autor, a pessoa, a linguagem, a literatura?

Literatura e filosofia
O conceito de Literatura advém da filosofia. Segundo Derrida, a literatura não deixa de ser filha da filosofia, integra seu sistema e carrega a marca de várias estruturas e noções de natureza filosófica (imitação, tempo etc.). Desse modo, podemos dizer que o conceito de literatura alicerçado na imitação, em última instância seria um disfarce do discurso filosófico com a finalidade de legitimar-se como discurso neutro. Sendo assim, estabelecida a proximidade da literatura com a filosofia depreende-se que também esteja em questão a problemática da verdade da literatura. Sendo a literatura baseada na imitação, como buscar a sua verdade? Não alinho minha resposta aos que defendem mimeses como organizadora ou determinante do campo literário. Penso que se faz necessário interpretar a mimeses, se a literatura deve ser definida pela sua relação com a realidade ou se ela mesma funda sua realidade? Não se trata aqui de escolher, mas perceber o que existe de comum nas duas possibilidades e a partir de então buscar essa verdade em literatura. Um caminho para essa verdade se apresenta pela alteridade, uma forma de extrapolar os limites da representação. E aqui apresento alguns caros atores dentro do universo deste breve texto: o leitor/o outro, o autor/o outro, estrangeiro/estranhamento e a ética/verdade.

Por isso, gostaria de distinguir claramente três coisas. Primeiro, a linguagem. Como vocês sabem, a linguagem é o murmúrio de tudo que é pronunciado e, ao mesmo tempo, o sistema transparente que faz com que, quando falamos, sejamos compreendidos; em suma, a linguagem é tanto o fato das palavras acumuladas na história quanto o próprio sistema da língua. Segundo, a obra: há essa coisa estranha, no interior da linguagem, essa configuração da linguagem que se detém em si própria, se mobiliza e constrói um espaço que lhe é próprio, retendo nesse espaço o fluxo do murmúrio que dá espessura à transparência dos signos e das palavras. Erige-se, desse modo, o volume opaco, provavelmente enigmático, que constitui a obra. Terceiro, a literatura, que não é exatamente nem a obra, nem a linguagem. A literatura não é a forma geral nem o lugar universal onde se situa a obra de linguagem. É de certo modo, um terceiro termo, o vértice de um triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a linguagem. (Foucault)

A linguagem, quer na literatura, quer na realidade, não tem o compromisso de traduzir a vida, o viver, mas sim uma realidade construída. Desse modo entendo que à literatura caiba a responsabilidade de repensar e reinventar a linguagem.

Mikhail Bakhtin aponta características do gênero romanesco, uma delas se refere à diversidade social de línguas presentes no romance. Esse plurilinguismo pode ser verificado em diversas obras de nossa literatura. Em romances de Erico Verissimo, podemos notar expressões em espanhol, a linguagem do fazendeiro, do peão, etc. Em Guimarães Rosa, ao longo de sua vasta obra, a linguagem do homem do sertão acompanhada de neologismos criados pelo autor. Cabendo assim à literatura explorar ao máximo a gama de recursos que a linguagem oferece.

Diante disso, a fila dos loucos jamais deixará de crescer, para o bem da arte literária. Acrescento a essa fila a silenciada e invisível obra de Campos de Carvalho.

Percebo o trabalho de Donaldo como uma abordagem epistemológica da escrita ficcional, a proximidade entre filosofia e criação literária, a arqueologia proposta por Foucault e a lógica literária. Investigar o peculiar uso da linguagem no universo da ficção, nessa escrita conhecida como lugar da dissolução do sujeito que fala, como uma transgressão à ordem do discurso.

“L’homme ne sait au fond ce qu’il peut penser; la fiction est là pour le lui apprendre.”

A ficção como método a contrapor o mundo lógico e racional, oportunizando diferentes formas de vida e outros usos da linguagem, a ênfase nessa característica vem a ser o ápice da obra de Joyce. Ainda Foucault: “Je n’ai jamais rien écrit que des fictions.”

Resumo da ópera: mais importante que ser ou não ser louco é a história da linguagem.

Joyce era louco?
Donaldo Schüler
Ateliê
238 págs.
Donaldo Schüler
Doutor em Letras e Livre Docente pela UFRGS e pela PUCRS. É professor titular aposentado em Língua e Literatura Grega da UFRGS. É professor do Curso de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS. Realizou estágio de pós-doutorado na USP, concluído com a publicação do trabalho Eros: dialética e retórica.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho