Inquietante estranheza

Em “Tristano morre”, de Antonio Tabucchi, estão em discussão a vida, a literatura, suas potencialidades e suas limitações
Antonio Tabucchi, autor de “Tristano morre”
01/04/2008

Tristano morre, de Antonio Tabucchi, é um romance que discute a vida a partir da eminência da morte, problematizando, portanto, a experiência dos limites em seus extremos de acerbação dos sentidos, paixões e desesperos. Trata-se de um protagonista, que, sabendo do fim que se aproxima, resolve unir-se a um escritor para contar a sua história e, principalmente, as reflexões e os delírios dos seus últimos momentos. “Quando um elefante sente que chegou a hora afasta-se da manada, mas não o faz sozinho, escolhe um companheiro que vá com ele, e partem.” Dentro dessa perspectiva, narrador-escritor é definido, inicialmente. É alguém que, por algum motivo, nunca explicitado, acompanha o personagem e o ajuda a colocar-se, marcar um espaço no qual a busca de sentidos repouse em paz no mais completo nonsense, o nada, a morte.

Como o elefante, Tristano “sabe que chegou a hora de morrer, leva a morte dentro de si, mas tem de colocá-la no espaço, como se se tratasse de um encontro”. O encontro com a morte, com um outro, consigo mesmo é uma das reincidentes obsessões de Tabucchi. Em Réquiem, por exemplo, a busca se processa em forma de alucinação e o encontro se dá com fantasmas do passado do protagonista, entre os quais se encontra o poeta Fernando Pessoa, já morto. Em Noturno indiano, tanto o romance quanto a adaptação cinematográfica de Alain Corneau giram em torno da busca de um outro, de um duplo de um si mesmo perdido na Índia e nos seus mistérios. Na maioria das vezes, isso implica a necessidade de delimitação de um espaço, nunca fixo, que se desloca pela viagem a lugares, países, culturas e imaginários diversos e conflitantes. É, de certa forma, o esboço de “caminhos incongruentes” de uma cartografia, muito mais afetiva do que, propriamente, física ou geográfica. Esses caminhos e espaços simbólicos servem para construir personagens, que mesmo oriundos de uma nacionalidade determinada, vivem o sentimento estrangeiro do não pertencimento, ao mesmo tempo em que experimentam a visão cosmopolita da vida. É o caso de Xavier, escritor português que visita a Índia ou de Tristano, que mesmo em seu leito de morte viaja através de suas memórias e personagens-fantasmas por sua Itália, por Portugal de Fernando Pessoa, pela Grécia de Defne, pela América de Marilyn, ou Rosamunda, pela Alemanha de Frau, as mulheres de sua vida.

Dominado pela dor
Em linhas gerais, o protagonista de Tristano morre parece delinear uma biografia através de sua voz e da escrita do narrador-escritor. Voz e texto vão tecendo fios que se cruzam, se perdem, se reencontram, seguindo o ritmo dos sonhos, dos delírios, dos efeitos químicos de um corpo dominado pela dor. Ora em terceira pessoa do singular, ora em primeira, a narrativa segue alternando, confundindo, misturando os pontos de vista de protagonista e narrador-escritor, que são de certa forma um e duplo, ao mesmo tempo. Voz e texto também se constituem como duas faces de uma mesma moeda. Por maior que seja o esforço para tentar diferenciá-las, estão intrincadas como se a moeda-narrativa-conversação estivesse rodopiando, sobre a mesa, num jogo de azar. Logo nos primeiros fragmentos, o pacto é firmado entre o protagonista e o narrador-escritor e, ainda, entre estes e o leitor. O que está em discussão é a vida e a literatura, suas potencialidades e suas limitações. Parte-se do princípio de que “a escrita falseia tudo, vocês escritores são uns falsários”.

Se este pressuposto já está definido desde o início, se o personagem reluta e até diz arrepender-se de ter chamado o escritor para ajudá-lo, “talvez por não acreditar na escrita”, como sugere, por que levar a cabo a realização do romance? Se os escritores são falsários, como o poeta é um fingidor, não se iluda, caro leitor, com a verdade dessa história de vida. Antes de mais nada, a voz que vive a morte em suas entranhas, ao se tornar escrita será literatura. Todavia, com todas as suas limitações, ainda há de servir para “deixar aos outros” alguma coisa da vida vivida, mesmo que seja apenas a “vida de fora”, já que “a vida verdadeira, aquela que se vive por dentro”, é indizível.

Em última análise, a relação entre protagonista e o narrador-escritor apresenta-se enquanto questionamento da própria escritura. Tristano pergunta ao seu suposto interlocutor, por que aceitou tão prontamente a tarefa de escrever sua biografia. “Não lhe basta a sua vida?” Em Pequenos equívocos sem importância, sob outra forma, a questão já se apresentava: “Por que é que lhe interessam a história dos outros? Também o senhor não deve ser capaz de encher as lacunas entre as coisas. Não lhe chegam os seus próprios sonhos?” Com isso percebe-se que não só o escritor é posto em xeque. A parceria do narrador-escritor com o protagonista também se estende ao leitor que precisa ser capaz de encher lacunas entre as coisas, num movimento de construção de sentidos que enlace a vida alheia com seus próprios sonhos e expectativas.

O fio da meada
Muitas são as tomadas intertextuais do romance. Aliás, o tempo todo a narrativa dialoga com outros textos. Ao admitir a precariedade da memória, que volta e meia “perde o fio da meada”, sugere-se a discussão de obra aberta, numa referência irônica às teorias Umberto Eco. Tristano pode perder o fio da meada, entretanto, cobra do escritor que não o faça, considerando isso um truque barato, quando num determinado “ponto da história há um salto, um vazio…, mistério…, por que não levam a meada até o fim, e então… obra aberta e o problema fica resolvido”.

O fio da meada nem sempre é encontrado, a história, de certa forma, dá seus saltos,, vazios…, mistério… mas, retomando Eco, apesar de poder “ser vista e compreendida segundo múltiplas perspectivas, manifestando riquezas de aspectos e ressonâncias”, isto não “redunda em alteração de sua irredutível singularidade”. Simplesmente, porque, contudo, o autor produz uma obra acabada em si, desejando ser compreendido e orientando a leitura para os objetivos de sua criação, dentro da forma estabelecida. Por outro lado, os mistérios, vazios, saltos, e fantasmas que se insinuam entre os fragmentos que se seguem, muitas vezes com fios da meada partidos ou perdidos, não são suficientes para caracterizar uma literatura fantástica. Nas observações de Todorov sobre o tema, “o âmago do fantástico” (…) “situa-se, num mundo que é bem nosso, tal qual o conhecemos”, no qual “produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis desse mundo familiar”. A tensão estabelecida é permanente sobre personagens e leitores, “ocupa o tempo da incerteza”. Na medida em que escolhemos uma resposta, achamos uma explicação para os impasses, não é mais o fantástico que está em jogo, talvez gêneros vizinhos como o estranho ou o maravilhoso.

Assim, a opção por temas que envolvam a experiência de situações limites já oferece, em si, explicações necessárias para o “estranho” que perpassa toda narrativa. Nessas situações, afinal, cada personagem e os próprios leitores são obrigados a lidar com abismos e fragilidades de nossa humanidade mais íntima. A leitura de outros livros de Tabucchi pode confirmar essa perspectiva. Em Tristano morre, a premência da morte certa, o estado terminal do moribundo, sob efeito do medo definitivo e das drogas paliativas e alucinógenas já são explicações mais que plausíveis para as digressões e fantasmas que circulam aos saltos nos vazios do texto. No romance Réquiem, por exemplo, o conteúdo de situações-limite já vem explicitado no subtítulo do romance, “uma alucinação”. Como esclarece Tabucchi na introdução: “Réquiem, além de uma ‘sonata’ é também um sonho, durante o qual a minha personagem vai encontrar mortos e vivos num mesmo plano”. Em Noturno indiano, Xavier se movimenta sob efeito permanente de uma insônia, que confunde seus sentidos, ao se deparar com a sonolência zen do povo indiano. As obsessões se intensificam nesse estado extremado entre sono e vigília, criando o clima propício para devaneios poéticos e existenciais de um “eu” partido em múltiplos fragmentos, numa busca inútil e compulsiva pelo encontro de um outro si mesmo.

Para dar conta da complexidade que problematiza momentos de tão intensa crise, a linguagem literária é insuficiente. Esta, apesar de tudo, continua sendo a mola mestra, pois a palavra e sua literalidade são a tônica. Entretanto, pede e encontra ajuda em outras formas de expressão e de linguagens. Não é à toa que tantos romances de Tabucchi vêm sendo adaptado para o cinema. A dinâmica da narrativa cinematográfica é incorporada ao texto e serve, muitas vezes, de suporte à narrativa literária. Em Noturno indiano, por exemplo, observa-se que o roteiro cinematográfico já estava esboçado no romance, que previa cortes, trilhas sonoras, ritmo, fragmentos bem marcados, além da construção de imagens e plasticidade cinematográficas. Apesar de o autor em entrevista afirmar que não busca nem persegue esses efeitos, “é o cinema que o procura”, como se fosse mera coincidência, é uma discussão a ser feita. Conscientemente, ou não, como a narrativa literária contemporânea lida com a narrativa cinematográfica, na ampliação de suas possibilidades de expressão?

Câmera móvel
No romance em questão, com todos os saltos, como na narrativa cinematográfica, parece se movimentar uma câmera móvel, que utiliza vários recursos em forma de outras linguagens, como a música de fundo, o corpo e a paisagem focalizados em perspectivas diversas, que ampliam as possibilidades expressivas tanto da forma textual quanto das alternativas de criação de novos sentidos, mesmos que precários e parciais. A referência a essa câmera e seus recursos é explícita em alguns momentos de devaneio do personagem, assim como surgem o zumbido da varejeira e outros ruídos, vozes e a música de Schubert, os poemas daqueles domingos de agosto, lidos, lidos pela amiga, enfermeira Frau, referências fragmentadas de pinturas célebres, fotografias antigas, e acontecimentos variados. Esses flashes e cenas cotidianas são cenários de um tempo que, como mosaico, descortina-se ao herói nacional, ex-combatente da guerra, agora moribundo, como fotogramas de um filme, pouco compreendido e a tantas vezes assistido. Tudo isso vem em socorro daquela voz que se despede dessa vida vivida “por dentro”. Ele traz a morte dentro de si, mas quer usufruir intensamente dos dias, minutos que lhe restam e acalenta ardentemente a utopia de deixar aos outros um pouco do que sobrou de si, a sua história.

Portanto, o ponto de vista, a partir do qual a história é contada, subverte qualquer tentativa de lógica linear da narratividade. Não há ponto de vista fixo, este ponto é móvel, transita entre a pena do escritor-narrador, a voz do personagem, com todos os seus sonhos e delírios. Essa mobilidade ajuda a estabelecer a confusão, ou melhor, a fusão de papéis, abre espaços para o vazio e a dispersão. Por outro lado, todo esse aparente estranhamento encontra resposta num mundo palpável, tanto da vida quanto da ficção, cujas leis são conhecidas e familiares. Quando personagem, por si só, não consegue explicá-las, lança mão dos cientistas de cabeceira, como seu médico, Dr. Zeigler, e o próprio Freud. Afinal, “pensando bem,, o ponto de vista pertence ao sonho, não se controlam os sonhos, é como o coração, temos que vivê-los como bem entendem”. O efeito da dor intensa e da morfina deixa Tristano num estado de déjà vu, segundo Freud, designada por inquietante estranheza. O efeito de um ponto de vista conferido aos sonhos, que segue sem aceitar rédeas, sob orientação apenas de um insubordinado inconsciente, justifica e, ao mesmo tempo, constrói a sintaxe da narrativa.

Os fios da vida, em seus extremos, e da literatura, em sua expressão poética desviante, como nos sonhos, entrelaçam-se e dialogam, num fluxo móvel, fragmentado, mas constante, até o último suspiro, ou derradeiro ponto final, ou o apagar e o acender das luzes.

Tristano morre
Antonio Tabucchi
Trad.: Gaëtan Martins de Oliveira
Rocco
191 págs.
Antonio Tabucchi
Nasceu em Pisa (Itália), em 1943. Foi professor de língua e literatura portuguesa na Universidade de Génova e diretor do Instituto Italiano di Cultura em Lisboa. Dedicado ao estudo da figura de Fernando Pessoa, produziu ensaios sobre este autor e o traduziu. É autor, entre outros, de A mulher de Porto Pim, Noturno indiano, Pequenos equívocos sem importância e Afirma Pereira.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho