Injustamente esquecido

Leitura atenta de “Os caboclos”, de Valdomiro Silveira, revela um contista cheio de humor, lirismo e cenas vivas
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/06/2013

O paulista Valdomiro Silveira — que passou a vida publicando seus contos em jornais e revistas, reunindo-os, de tempos em tempos, no formato de livro — sofre, até hoje, a incompreensão de parte da crítica literária. Mas não se pode esperar muito de alguns mandarins, sempre prontos a enaltecer o beletrismo cabotino de Afonso Arinos — como não me canso de dizer — e desprezar, por exemplo, a espontaneidade e a tensão épica do goiano Hugo de Carvalho Ramos. Aliás, este último forma, ao lado de Simões Lopes Neto e do próprio Valdomiro Silveira, a tríade que não ergueu suas preocupações regionalistas à condição de um mausoléu da linguagem ou dos costumes locais.

Fisgar o leitor
Os caboclos, primeiro livro de Valdomiro Silveira, publicado em 1920, reúne vinte e quatro contos elaborados entre 1897 e 1906, com exceção da narrativa que fecha o volume, Desespero de amor, escrita especialmente para a Revista do Brasil, em 1915.

São histórias singelas ou dramáticas, de inícios contagiantes, que quase sempre capturam o protagonista num momento revelador. É o que ocorre em Esperando:

A Maruca trepou ao lugar mais alto daquela pedra e pôs-se a olhar o rio. O rio estava repontado de uma vez, e corria quase em silêncio: tinham-se-lhe encoberto as rochas das corredeiras por sob as águas da última chuvarada. Um martim-pescador, sentado no guatambu da ribanceira, olhava para o largo, tocaiando os peixes. E o vulto do martim-pescador, fazendo sombra no rio, depois da sombra da Maruca, tinha jeito de lhe estar de pé na cabeça.

Perceba-se a forma algo simples de narrar, obediente à tentativa de reconstituir a fala caipira — avessa, certamente, à mesóclise —, claro propósito do autor, que sequer evita repetir certos vocábulos, o que não o impede de descrever com habilidade a posição curiosa assumida pelas sombras.

Iniciar bem é uma arte, ainda que os teóricos do conto insistam na importância dos finais. Em Na tapera de Nhô Tico, as exclamações que irrompem sob o sol fisgam o leitor:

— Ota! Solama bruta! — ia dizendo Chico Pica-pau, sozinho, pela estrada vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e rosto abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta azul que vestia a oração livradeira das cobras e dos outros bichos da peçonha […].

No conto Salvação, os pássaros espocam, quase antropomorfizados, numa barulheira tremenda:

Um gurundi pegara a chiar, muito aflito, no meio do cambuizal: e perto dele, em gritaria alvoroçada, enrufando penas, iam pelo ar os bem-te-vis, as cabeçudas e as sapucaias. Chegou a aparecer no tumulto, curiosa e assustada, uma meia-pataca: mas, pousando em galho vizinho ao em que estava o gurundi, tomou-se logo de tamanho terror, que abriu vôo, desmanchado em cor de havana, entre os ramos povoados de frutinhas vermelhas.

Não de forma tão abrupta, mas com desagradável surpresa, começa a narrativa Camunhengue:

Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça despovoava de cabelos e uma quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.

O traçado
Esses começos, capazes de prender nossa atenção, anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a de criar narradores que se expressam com desembaraço, colocando o leitor diante da cena viva, nítida. Como em Por mexericos:

O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e fitas cor-de-rosa, punha gosto em ver que se enrolavam como uma trança desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os sarrafos e a serragem […].

Sua técnica pode se revelar numa composição metafórica que resume, de forma poética, certo estado de espírito: “[…] Para quem trazia saudade velha, não havia hora melhor: tudo em roda estava quieto, o sol ardia, e a sombra dos arvoredos era boa e serena como um perdão” (Hora quieta); ou pode se distender em analogias aliciantes:

Mas a calma fugiu logo: o José começou a falar-lhe um dilúvio de coisas, com a voz abafada como a dos urus na grota do ninho, e sempre se lhe ia chegando mais para perto, a ponto de ser preciso que ela às vezes recuasse para um lado e outro. A voz do José tinha o som de um enxame de mirins fumegando à porta do mel: e o que a voz dizia, naquele pouco som, tinha a mesma doçura que o mel dos mirins. (As fruitas)

Nas mãos desse contista, as frases se encadeiam sem adereços desnecessários, o ritmo torna-se leve — e a paixão é descrita com perfeito toque de humor:

O carreiro levava uma carregação de sal para o Tibagi; mas ficou tão enlevado na Vicença (agora, que ela era linda, isso era!), ficou tão enlevado, que por um triz não se lhe derreteu o sal com os aguaceiros de maio, caídos sem mais tirte, nem guarte, nem licença dos que andam apaixonados. Estava quase aguando, o pobre! com sal e tudo, a boiada engordando na grama larga, e o tempo dando trinta dias por mês: até que enfim, ganhando coragem, pediu a moça, numa janta, em cima da última colher de cocada preta e antes da tigela de café. (Última vez)

O inusitado dos verbos não recupera apenas a linguagem típica do interior paulista, mas areja a frase e soma-se aos adjetivos e ao advérbio para tornar a personagem visível:

[…] O Valério machucava um parelho de brim de algodão trançado, tinha um lenço de ramos atado à camisa de morim e quebrara à testa, vitoriosamente, um chapéu cor de leite com café. […] (Saudade do Natal)

Em Os curiangos, desoladora história do coveiro Pedro Mariano, a febre, talvez a gripe espanhola, se instala na cidade. O estranho bater dos sinos e a pobreza dos funerais ampliam a dor das sucessivas mortes:

[…] Não acabava o sino de bater por um defunto, devagar, devagarzinho, já pega a bater por outro, mais depressa, até que o toque dos mortos já parecia repique de festa, credo em cruz! Os que tinham alguma coisa de seu, lá iam meio arranjados p’r’o carro preto, depois de um terno de homens de fora esborrifá-lo de quanta água esquisita há; os outros, que morriam p’r’o hospital ou p’r’esses ermos, a carrocinha de pão vinha buscá-los, e, depois que os tais home’s os deixavam molhados duma vez, lá iam p’r’o alto da estação, toca-que-toca, sofrendo a birra dos cocheiros e o trote duro dos cavalos arrebentados.

A devastação irrompe diante da personagem que volta, sem avisar, à cidade e, ao descer do trem, vê apenas abandono, destruição. “É a viração do mundo”, sintetiza o narrador, o que onte’ era doce devera, amarga hoje; o que fora bom, fica ruim”, recuperando a clássica figura do “mundo às avessas”, tão bem descrita por Ernst Robert Curtius. Logo depois, quando o protagonista se vê forçado a enterrar a mulher que amava em segredo, o infortúnio leva-o à loucura. Vagando enlouquecido, Mariano imagina sofrer o ataque da natureza:

Chegou à porteira que dá p’r’a chacra do João Júlio, dobrou às canhas, atormentado, sem tino e sem tento, e foi beirando os trilhos. Agora, a barulhada não era só dos curiangos, em roda: lá dentro da cabeça também a bicharia amotinada lhe fazia um guaiú de ensurdecer, como se tivesse ânsia de voar, no mesmo auto, p’r’aquele milheiro de gargantas despregadas. E sentiu recrescer a loucura dos curiangos, e a raiva, enquanto os bitus e içás estalavam de leve as asas tremidas, e as escumanas se lhe encaminhavam p’r’o meio dos miolos, campeando saída a toda pressa.

Mas Valdomiro Silveira também sabe ser lírico, como neste trecho de Desespero de amor, em que sol e lua se alternam não só para reforçar a idéia da passagem do tempo, mas também criar uma ilusão pictórica:

A paixão lavrou depressa: não podia passar muitas horas longe dele, esperava-o à porta com flores no cabelo, no peito ou na cintura; e ficava a acompanhá-lo com os olhos, tempo esquecido, até que o vulto desaparecesse no caminho e sobre o caminho caísse toda a poeira que aquele vulto erguera na passagem. Quantas vezes o sol a cobrira de ouro, vendo ela o Chico Só a sumir na lonjura de um morro, e a lua viera cobri-la de prata, sem que ela se afastasse ainda da porta, enamorada e sonhadora!

Desenlaces
Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os finais podem ser impactantes num conto, sejam eles o desfecho clássico que Edgar Allan Poe advogava, com sua tese de que o dénouement deve ser escrito antes de tudo, ou apresentem a perturbadora sensação de permanência — e muitas vezes de irresolução — da narrativa tchekhoviana.

Em Por mexericos, Nhô Fernando, interrompido no trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com aparente paciência — até correr o falastrão de sua oficina, confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não morde”. A história do topetudo que se acovarda retorna no conto Valentia, mais cômico, com Ana Triste — “pixaim repuxado para as orelhas, à força de pente, remexido em caracóis e todo besuntado de banha com essência de rosa” — enfrentando o brigão Imbuava. No conto Missa da Páscoa, a alegria antecipada, os cuidados da vaidade, os sonhos do amor correspondido — maiores do que os da paixão impossível — são destruídos de repente, restando apenas o vazio num final em que a protagonista sequer tem a chance de reagir. Pinhã refugada termina com o golpe de insolência e desprezo sobre a prostituta que começa a envelhecer, mas cuja inabalável dignidade se revela, em meio a soluços, na última frase. Em Desespero de amor, a confirmação do adultério é anunciada de forma sutil mas inquestionável, também por meio de breve sentença.

Mas os causos de Valdomiro Silveira podem terminar sem surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se vê, contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente: em Cena de amor, Chico Luís e Candoca, ambos feios, se apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão que toca a trança da mulher — trança, aliás, sutilmente anunciada parágrafos antes —, sintetiza a narrativa; o fecho de Hora quieta chega a ser pueril, mas, graças à espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é transferido a delicioso universo, no qual não há espaço para angústias ou dúvidas existenciais — sentimento que se repete em Salvação, por meio do saudosismo feliz do velho e bom Albino. Em Mamãe, ao contrário, a dor materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a Chiquinha Sabiá, protagonista do Faiscador de Carumbé, sua devoção ao galanteador Zé Saúva; previsto, o desgosto permite-lhe apenas aflitiva reação: “Agora (ela gaguejou um tempinho), agora (e pôs-se a tremer os lábios), agora (e desatou a chorar), agora só morrendo!”. O choro convulso e o arrependimento dominam Lainha, em Constância, quando esta percebe, tarde demais, que não fora fiel ao próprio coração.

Tempo e consciência
O talento desse contista pode se revelar, ainda, na composição dos diálogos. Em Saudades do Natal, as memórias de Valério e Doninha se alternam — uma verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento, desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte. Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo da festa familiar, realimenta-se em emocionado continuum.

A fim de marcar o progresso da morfeia, o tempo ganha relevância em Camunhengue, mas avança segundo os ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria, embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca Estevo sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade todo santo dia”, a esposa já se recusa a dormir com ele na mesma cama; na estiagem, numa manhã de dezembro, Zeca parte definitivamente, rejeitado por todos.

Narrativa concisa, Cena de amor revela, sob a trama em que alguns encontraram apenas ingenuidade, a plena abertura de Nhá Candoca à vida — apesar da feiura, esta mulher não se permite a mínima autocomiseração. Semelhante força moral está presente em Na tapera de Nhô Tido: Chico Pica-pau, o protagonista, passa da inquietação e do desejo de vingança ao estupor que lhe permite reencontrar o sentido da própria consciência.

Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira. Abandonado por certos críticos num limbo nada honroso, ele merece leitura atenta — inclusive para lembrarmos que a literatura não deve espelhar apenas derrotismo, misantropia e tédio.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Lima Barreto e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

Valdomiro Silveira
Nasceu em Senhor Bom Jesus da Cachoeira (SP), no dia 11 de novembro de 1873, e faleceu em Santos, (SP), no dia 3 de junho de 1941. Passou a infância e a adolescência em Casa Branca (SP). Formado em Direito, viveu em Santa Cruz do Rio Pardo até 1897, quando retorna à capital. Ainda em Casa Branca, fez estudos de Ornitologia e Botânica, e escreveu seus primeiros contos. Durante suas estadas no interior paulista, procurava a convivência dos caboclos, observando-lhes os costumes e a linguagem. Sua obra foi publicada em jornais e revistas, principalmente A Semana, A Bruxa, Revista do Brasil, Gazeta de Notícias, O País e O Estado de S. Paulo. Também foi deputado e secretário de Educação e Justiça do Estado de São Paulo. Deixou os livros de contos Os caboclos (1920), Nas serras e nas furnas (1931), Mixuangos (1937) e Lereias (1945, póstumo), além de várias narrativas ainda inéditas. O arquivo do escritor encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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