Influência sem angústia

Reginaldo Pujol Filho leva ao extremo exercício do metadiscurso
Reginaldo Pujol Filho, autor de “Quero ser Reginaldo Pujol Filho”. Foto: Vini Marques
01/04/2011

Em algum momento de suas buscas artísticas, o literato iniciante ouve de alguém que ele só será de fato um escritor quando andar com os próprios pés, o que, em literatura, significa escrever com as próprias mãos. É quase um clichê na confissão de autores, já num momento de maturidade, o registro de que copiaram seus escritores preferidos. Dentre inúmeras situações exemplificadoras, ocorre-me uma carta em que Carlos Drummond de Andrade, em meio a algumas observações justamente elogiosas, adverte o novato José Paulo Paes, quando do lançamento do primeiro livro deste: “Você ainda não me parece você”.

Por outro lado, há quem defenda a idéia, inclusive, da impossibilidade de uma obra ser totalmente pioneira, pois a este estágio da história da cultura, aquele que cria inevitavelmente recupera algo já criado por outrem. É como se ninguém fosse capaz de partir inteiramente do zero. Isso não gera, porém, um conforto para quem escreve, visto ser de conhecimento geral uma lei segundo a qual ninguém ingressa na posteridade sem passar pela via da originalidade.

Além da maneira particular que o autor formula para desenvolver seus textos, a originalidade literária se dá nas obras distintas por proporem questões que nos conduzem à reinterpretação dos fenômenos literários e das opiniões derivadas destes. Em face disso, é bastante oportuna a aparição de Quero ser Reginaldo Pujol Filho, segundo livro de contos do gaúcho Reginaldo Pujol Filho.

O volume, composto por dez narrativas, mostra-se claramente propenso a entortar conceitos referentes ao campo dos gêneros literários, sobretudo as demarcações que separam autor do livro, emissor do discurso e personagem do enredo. “Querendo ser” dez escritores (serão apropriadas as aspas?) bem distintos — a lista vai de Miguel de Cervantes a Luis Fernando Verissimo, passando por Machado de Assis e Amílcar Bettega Barbosa —, Pujol Filho escreve com total absorção da voz do ícone alvejado. No conto Quero ser Mia Couto, o jornalista brasileiro Carlos Peixoto, enviado a Moçambique para cobrir um conflito civil, compra no país um computador anteriormente pertencido ao escritor moçambicano. Em explícita contaminação literária, assim se manifesta o jornalista quando escreve a seu chefe para dar ciência dos ocorridos:

Não sei o que dá no meu idioma, parece que minha gramática está ficando toda suja, da cor dessa terra. Parece-me assim, pois escrevo-lhe como desde sempre, mas recebes desde nunca o imagissonhado por mim. Pergunto-me se a África rouba-me o ser, se há uma almândega, donde os espíritos daqui carimbam minhas palavras — ou seriam palaves? Na falta d’um telefone, gravei uma testemunhação no computador, a qual envio-te para escutares e perceberes o trespassado comigo.

O autor revela grande habilidade no traço mimético, pois em cada texto sua mão é outra, num processo de incessante transmutação e em radical acordo com o título indicativo do autor a ser imitado. Num dos lances mais expressivos, quando Pujol Filho copia Italo Calvino, o exercício metadiscursivo é redobrado (vista a escrita típica do italiano), e a transposição estende-se à transpiração: “Um conto que transmita a sensação da passagem das horas de um dia. Escrevê-lo em uma estrutura rígida com exatos 24 parágrafos (60 linhas em cada um). Esse texto deverá ser escrito por inteiro em um único dia, em precisas 24 horas”.

Estremecimentos
Conforme dito anteriormente, o livro não se limita à imitação e ao metadiscurso. Os estremecimentos da razão teórica acerca das classificações literárias é explorado com recorrência, manifestando-se especialmente nas vezes em que autores tornam-se personagens, seja no caso de um dos copiados — “Por isso vou circular, é a última chance de tirar o Rubem Fonseca do meu caminho” —, seja no do próprio copiador: “Quando eu já esperava um narrador de boxe, turfe ou mostra de arquitetura, me aparece essa. Reginaldo. Minha cara, minhas roupas. Meu deus!”.

Dessa maneira, Quero ser Reginaldo Pujol Filho ingressa na família das obras conscienciosamente desafiadoras das etiquetas que, via de regra, nascem da monotonia e da ausência de inventividade. Mais do que isso, o autor leva a um alto grau a prática metadiscursiva, fazendo com que, ao fundo, a própria literatura seja o assunto central de cada um dos dez relatos componentes do volume. E talvez a leitura mais coerente da obra seja a que aponta para a questão da influência (bem evidenciadas nas epígrafes de Henry Miller e Pablo Picasso): Reginaldo Pujol Filho pretende mostrar de maneira ampla a matéria de que se constitui como escritor, mas sem qualquer peso. Ao contrário, sua relação com os ídolos é antes marcada por um sarcasmo que desautoriza (ou ao menos disfarça bastante bem) qualquer possibilidade de angústia em relação à imitação de seus mestres.

Mas além das implicações formuladas pela obra, é importante observá-la mais de perto para percebê-la como realização em si. A crítica universitária vem se interessando há tempo considerável pelas obras pautadas pela desconstrução da face convencional da literatura, especificamente por empreenderem intercruzamento com outras artes e com diversas formas de tecnologia. Muito do que se escreve e se publica hoje tem, de fato, uma inclinação à reordenação de fórmulas e diretrizes, mas se considerarmos que não se pode desprezar a capacidade expressiva da arte, veremos que boa parte dos textos escritos atualmente são, sim, diferentes; mas pode ser que muitos deles não sejam necessariamente literários.

Objetivamente, o livro de Pujol é desprovido de singularidade autoral. Claro que nada nem ninguém deve ser julgado por aquilo que não desejou realizar, e pode-se com sinceridade dizer que, nele, a originalidade se dá pela voluntária falta da mesma. Mas quando a cópia não se mostra impactante, a ponto de superar a matriz, ela não passa de uma cópia, com grande possibilidade de desinteresse. E como a imitação se perpetua por dez textos, inevitavelmente antes do quinto começamos a nos perguntar como seria o “Pujol Filho Pujol Filho”, saído dos outros e ingressado em si.

Por isso, à exceção de um ou outro momento de notável capacidade de espreita e de competência na mímese, as narrativas se fragilizam por se resumirem a apresentar os traços estilísticos dos autores abordados. Em Quero ser Luis Fernando Verissimo, por exemplo, vê-se apenas um diálogo à moda do Analista de Bagé, famoso personagem criado pelo autor de Comédias para se ler na escola. Mas ao contrário do que se poderia imaginar, o diálogo entre o truculento psicólogo e um jovem escritor em crise “identiliterária” não rende um humor digno da referência, tampouco dá cambalhotas nas expectativas para conduzir-se a uma narrativa dramática.

As tentativas fracassadas de humor não se restringem ao relato inspirado em Verissimo. Elas se espalham por quase todo o livro, e ficam como outra nota menor de uma obra instituída, ao que tudo indica, pelo teor debochado e pela postura informal diante da seriedade que se costuma associar à escrita de um livro.

Me pegou, Consciência, filha da puta. Pior é que nem com a provocação o Escritor reage. Bom, digo pra eles [os personagens] puxarem uns banquinhos e sentarem aqui, perto do computador. Começar a trabalhar, é o jeito. Revejo os personagens que tenho na mão. Um escritor travado e uma consciência. Mais clichê que isso não pode. Mas a consciência é personificada. Será… Não, clichezaço. Só falta começar com Era uma vez. Que que eles ficam me olhando?

A obra metadiscursiva não foi inventada recentemente, mas hoje ela ocupa um lugar de destaque no panorama literário, e o porvir vai nos dizer se isso é sintoma de uma nova educação artística, emancipada da mera representação, ou apenas mais uma moda afoita para dizer que a literatura está nova. O trabalho de Reginaldo Pujol Filho é aqui avaliado numa seção de contistas agora despontados, e apesar da interessante idéia que orquestra todo o seu livro, fica uma lacuna, causada justamente pela sua excessiva ausência.

3 Perguntas – Reginaldo Pujol Filho

• Por que iniciar a carreira literária com um livro de contos?
Olha, acho que pra mim esse porquê é: porque não tinha outro jeito. É que eu fui ter vontade de escrever, digamos, umas histórias, uns textos, quando eu tinha uns doze anos, lendo Luis Fernando Verissimo. Posso dizer que, durante um bom tempo, escrevi pra tentar fazer coisas como as do Veríssimo do Analista de Bagé, do Ed Mort, do Sfot poc, do Mais palavreado, sem saber (ou pensar) se estava fazendo conto, crônica (todo mundo diz que o Verissimo é cronista), texto, ou umas histórias. E, se já tinha essa influência do Verissimo pra eu escrever narrativas curtas, há nove anos um amigo meu, o Márcio, organizou um grupo de oficina com o Charles Kiefer e me convidou pra participar. Topei. Foi aí que eu acredito que comecei a fazer conto com mais ciência de que estava fazendo conto e com gosto pela coisa, porque não tem como não se apaixonar pelo gênero depois de ser aluno do Charles. Então são duas coisas muito fortes me impelindo a estrear pelo conto: a influência primeira do Veríssimo e os ensinamentos do Charles, a paixão dele, abrindo pra mim um mundo de Tchekhov e Poe até Amílcar Bettega e Altair Martins. Acho que não tinha nem como pensar em lançar algo que não fosse contos.

• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Acho que foi essa minha descoberta do Luis Fernando Veríssimo, quando me emprestaram o Sexo na cabeça. Depois li todos os livros que eu podia dele e tentei fazer textos como os dele, mas não tinha a menor noção de que estava tendo contato com a literatura (acho que naquela época isso significava só uma matéria que eu teria no 2º grau). Mas meu contato com a literatura é bastante atabalhoado. Nessa época da adolescência, quando escritores se apaixonam por Dostoiévski ou por Dante, eu lia o que me divertia. E escrevia pra divertir. Só fui começar a ler clássicos com atenção e paixão depois dos dezoito anos e acho que fui me tornar um bom leitor depois de encarar a oficina literária. Mas o que a literatura representa hoje na minha vida? Não tem definição objetiva, acho. Porque é o prazer de pegar um livro e ler, mas também é essa coisa de escrever, que é tão bom de fazer, mas às vezes depois de chegar do trabalho, ou num domingão, é tão difícil de começar, mas depois que começa é difícil de parar. E tudo isso, pegar um livro, começar um texto, assim, sem ter um porquê definido. Dá pra dizer o que isso significa?

• O que você espera alcançar com sua escrita?
Rapaz, que pergunta difícil. Talvez eu devesse responder “Quero alcançar ser Reginaldo Pujol Filho”, mas a verdade é que nunca pensei na minha escrita como uma coisa assim pra alcançar outras coisas. Tô pensando bastante pra responder isso, mas me parece que vivo minha escrita de um modo conta-gotas, uma coisa por vez. Antes, o que eu esperava alcançar era fazer um conto funcionar, imaginar uma história, encontrar uma linguagem, um narrador, um jeito diferente de fazer isso. Hoje, acho que continuo querendo alcançar isso, mas somei o projeto de um livro, conseguir costurar uma história na outra, ter um livro de contos consistente, ou, quem sabe, um romance de verdade. Acho que aos 30 anos é isso que eu quero alcançar com a minha escrita: fazer literatura que eu gostaria de ler. Essas coisas de alcançar a eternidade, fortuna, o Nobel ou multidões não me passaram pelas idéias ainda.

Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Reginaldo Pujol Filho
Dublinense
144 págs.
Reginaldo Pujol Filho
Nasceu em março de 1980, em Porto Alegre (RS), onde vive e trabalha como redator e publicitário. Publicou, em 2007, o livro Azar do personagem (Não Editora), e dois anos depois organizou, para a mesma editora, a antologia Desacordo ortográfico.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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