Infelizmente

Resenha do livro "Felicidade demais", de Alice Munro
Alice Munro, autora de “Felicidade demais”
01/11/2010

Felicidade demais, livro de contos de Alice Munro, é uma obra impressionante. Em Dimensões, história que abre a coletânea, o leitor encontrará Doree, a camareira de uma pousada. Ela diz: “Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas. Mas continuam verdadeiras”. Sem demora, Doree se envergonhará por ter dito “mortas”, como a perceber que a tarefa de Alice Munro é justamente a de revitalizar palavras, coisa que faz de forma magistral. A autora é capaz de transformar o mais cruel cotidiano, a mais maçante rotina, em um fantástico esconderijo de surpresas.

É desse cotidiano que Munro extrai os seus personagens simples, alguns simplórios, carregados de imprevisibilidade, e sempre em busca de uma felicidade fugidia. Seus contos, no entanto, não apresentam o menor traço de superficialidade ou simplicidade; são histórias densas, em que avançar e recuar no tempo são recursos fartamente utilizados. Munro, por vezes, consegue fazer sua narrativa soar como um quadro barroco, cheia de contrastes, com a dramaticidade beirando o excesso e uma tensão bem estabelecida entre o material e o espiritual. É quando a autora pesa a mão. O que impressiona é que tal estratégia não compromete a narrativa. Ela é diluída, sobretudo, pelo fato de Alice Munro sempre colocar seus personagens diante do não-convencional. Só que isso não é uma fórmula. Em Felicidade demais, o que está exposto é uma grande variedade de sutilezas. Três contos são exemplos dessa consistência narrativa e dessa assombrosa tensão.

Em Dimensões, a jovem Doree, mãe de três crianças, é, como já foi dito, camareira de uma pousada. Casada com Lloyd, conhecera-o auxiliar de enfermagem. Pai de dois filhos, ele os imaginava adultos, embora não fizesse a menor idéia sobre o paradeiro de ambos. Doree e Loyd mudaram de cidade, foram viver juntos e logo vieram os filhos. Três crianças que um dia, sem mais nem menos, seriam estranguladas pelo pai. Loyd é condenado, gastará seus dias em um manicômio, de onde escreve cartas e mais cartas a Doree no intuito de convencê-la de que os matara por convicção, e não devido à loucura. Mas, convicção, quem tem é Doree. O inusitado trará alento à camareira.

Rosto conta a história da menina Nancy, que cortou o próprio rosto com uma navalha. Queria ter um defeito igual à deformidade de nascença apresentada por um amigo. “Foi na mesma bochecha”, ela diz. “Como a sua.” Já Brincadeira de criança é a história de duas crianças que matam uma terceira, deficiente.

A cabeça de Verna não retornou mais à tona, embora não estivesse mais inerte, mas se revirando como que se divertindo, leve como uma água-viva em seu habitat. Charlene e eu estávamos com as mãos em cima dela, em sua touca de borracha. Pode ter sido um acidente. Como se nós, tentando recuperar o equilíbrio, tivéssemos nos agarrado no objeto mais próximo, grande e de borracha, mal percebendo o que estávamos fazendo. Pensei em tudo isso. Acho que teríamos sido perdoadas. Crianças pequenas. Aterrorizadas.

Sim, o terror está presente nos contos de Felicidade demais. O terror que não exige esquartejamentos, zumbis ou vampiros, mas o terror que habita a infância, a crueldade das crianças, que cresce e nos espera na porta de entrada de nossa velhice. O terror há nos exigir lembranças, geralmente tristes. Dos filhos abandonados de uniões desfeitas à filha morta do casamento quase infantil, são lembranças da realidade deste resenhista. Lembranças rápidas, já chegaram à minha velhice e jamais se satisfarão com minha dose de sofrimento.

É a vida, a vida a nos fornecer material para o sofrimento ou para a ficção, no caso de Alice Munro. A vida, a vida pela ótica da autora de Felicidade demais: “Eu cresci, e fiquei velha”. Vidas comuns, vidas pequenas, o cotidiano, a rotina, viver e se deixar levar pela vida. Hoje, amanhã, depois de amanhã. Sempre tudo igual. Sempre. A mudança é a morte, a frustração traz traços de normalidade implacável.

As vidas apresentadas por Alice Munro são precárias, assustadoras, lamentavelmente próximas de nós. Crescem tão-somente em função de uma desgraça. Viver, aqui, não é perigoso. É triste, não tem saída, não tem volta. Há também um quê de Beckett nas personagens de Munro, como no conto Algumas mulheres:

E minha avó havia me avisado para, se possível, eu evitar de tocar em qualquer coisa que o paciente tivesse tocado, por causa dos germes, e que eu sempre deveria usar um pano entre meus dedos e o copo d’água dele. Minha mãe disse que leucemia não passava por germes.

“Então pega como?”, disse minha avó.

“Os médicos não sabem.”

“Ah.”

Felicidade demais é o retrato pálido da miserável condição humana. Nele, o leitor encontrará doses homeopáticas de alegria, geralmente oriundas do conta-gotas do acaso, do crime, das fantasias sexuais e das lembranças. Infelizmente.

Felicidade demais
Alice Munro
Trad.: Alexandre Barbosa de Souza
Companhia das Letras
344 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho