Infância sórdida

"O azul do filho morto", do paulista Marcelo Mirisola, 35 anos, não deve ser posto na estante de biografia
Marcelo Mirisola, autor de “O azul do filho morto”
01/04/2002

O azul do filho morto, do paulista Marcelo Mirisola, 35 anos, não deve ser posto na estante de biografia. É pura invenção, apesar das coincidências de cidades (São Paulo, Santos, Florianópolis) e datas com a trajetória do autor. Ocorre uma eventual confusão entre o escritor e o narrador, entre o que se vive e o que se poderia ter vivido. Mirisola é um maestro dos ruídos de comunicação. Evidentemente, aquele que fala no livro é sua ausência, o filho morto. A realidade biográfica é somente o ponto de partida. O sujeito ficcional que remói sua vida com cinismo e devassidão nada tem a ver com o criador. Até porque encontra-se neste vertiginoso romance o típico canalha sedutor, que mal contém a incontinência verbal de destruir as relações familiares que o cercam. Um protagonista que leu seu primeiro livro aos 26 anos e chupou sua primeira buceta aos 24. Reprimido e tardio, que queima putas com pontas de cigarro, guarda imagens de sua mãe lésbica, da prima garota de programa, dos favores sexuais de um colega de escola, do totalitarismo da avó. Ou seja, um inferno particularmente lotado de boas intenções. “‘Isso’. Eu era o ‘isso’ do meio, o filho do meio. E, a despeito dos meus ‘progressos’, não saía do quarto da empregada.”

Diante da profusão de mazelas, o leitor nem ama nem odeia o interlocutor, entra no estranho mundo da convivência, da dependência pelo hábito. É impossível não seguir adiante, assim como é difícil manter a serenidade sem ser fisgado pela raiva. O protagonista é suficientemente irritante para não ser esquecido.

Mirisola transformou a covardia e a inaptidão do personagem em lidar com as circunstâncias em coragem do caos. O azul do filho morto (o título evoca as obras melancólicas do mineiro Lúcio Cardoso) é um romance de deformação em dez capítulos, diferenciando-se do “Bildungsroman” (romance de formação). Ele flagra episódios de infância, da adolescência e da maturidade justamente pelas experiências que não deram certo. Afirma-se negando. Não quer ensinar, mas esvaziar todo aprendizado. Daí que temos um antimemoralismo por excelência. A memória relatada é sobretudo criação, devaneio, despistar fantasmas. Mirisola, que já dava provas de seu fôlego nos livros de contos Fátima fez os pés para mostrar na choperia e Herói devolvido, revela-se um artesão da mentira, relojoeiro maldito que entorta ponteiros, rouba peças e zomba das convenções. “Se existe verdade é por descuido”, avisa, oferecendo a senha de leitura. Sua obstinação consiste em provocar a dispersão plena do foco narrativo. O enredo acumula fases e traumas, não propiciando tempo para meditação ou reflexão. Um exemplo: “e tava apaixonado por uma lésbica, que era eu mesmo, que era Luciana H., que era minha mãe. Uma curiosidade. Foi lá, em E. S. Pinhal, que caiu o avião do Trio Parada Dura — bem feito para eles”. Percebe-se a intensa mudança de assunto, a sobreposição, o contínuo escape. A narrativa basicamente acentua a desconcentração. As frases soam gratuitas, mas revelam o ardor de um estilista que troca de período antes de cair no sermão ou se paralisar no dogma. Porque é preciso muito estilo para demonstrar a falta de estilo. Tal acurado artista, disfarça sua linhagem lírica pela seqüência de palavrões. Mesmo reprovando a poesia in limine (“pior que poeta, só livro psicografado”), é ela que sustenta os momentos de passagem, como a transição do segundo para o terceiro capítulo: “amor por demais; portanto vivido, enganado e matado, nunca morto demais”. É o lirismo contrabandeado na prosa que causa os maiores estragos psicológicos, apresentando um resquício de humanidade no submundo e no porão das psicoses. “Eu pedia licença para minha sombra” ou “sem neblina não ia ter Fellini” ou “eu queria foder com as palavras” (que combina com os versos “eu bolino com as palavras” de Manoel de Barros). O narrador escamoteia sua sensibilidade pelo exagero. A poética surge em momentos raros e epifânicos, mais vistosos em contraste com o conjunto cru e desbocado.

Destruir as aparências se faz importante para não escorregar nas ciladas propostas pelo romance. O que reflete narcisismo (“eu tava casado comigo mesmo”) é desvalia. O que parece solidão é alheamento (“desinteresse forçado”). O que simula lembranças são “fingimentos”. O que é intimidade na verdade representa a memória popular. Mirisola desanda nomes da cultura pop brasileira: Xuxa, Cid Moreira, Dina Sfat, entre outros. De igual modo, cita uma série de objetos de consumo que tipificaram o passado de uma geração, como Kichutes, o salgadinho Mandiopã, Galaxie 500 e programas televisivos, na linha de “Almoço com as estrelas”. Este “inconsciente coletivo” traz uma identificação superficial, que mascara e foge das possibilidades autênticas de diálogo.

Confessional a princípio, O azul do filho morto contraria as elucubrações de um exorcista e quebra o formato de desabafo. O autor funda uma prosa paranóica, pantanosa, evasiva, que leva as últimas conseqüências o ato de viver (mais do que o de escrever). Recusa procurar a compreensão como o Kafka e suas cartas ao pai (aliás, a discrição da figura paterna e masculina é um dos pontos nevrálgicos da identidade narrativa de Mirisola e esclarece a misoginia). Não quer também o perdão como Memórias do subsolo de Dostoiévski. A religião que vinga aqui é a do ressentimento, os fatos são fechados e peremptórios, privados de qualquer fresta para uma possível conversão ou renascimento. O rancor é conclusivo. “Devo ter passado uns vinte anos enterrado, obrigando-me a fazer o contrário, olhar mais pra baixo, mais pro fundo. O castigo antes do crime.”

O humor serve para provocar o relaxamento muscular aliviando a tensão, espécie de preliminar do ódio, seja ao se listar os desafetos (“odeio triatletas — três vezes imbecis”), seja ao se referir ao eterno passado do clube de coração Palmeiras (“os bustos de bronze usam costeletas”).

O que merece destaque é a visão da infância, desprovida de nostalgia, contestando sua tradicional mitificação como reservatório ideal da pureza. A infância é definida como “sórdida” e “claustrofóbica”, somente compatível à decadência dos móveis da casa em que cresceu. A menina que se suicida do alto de um edifício norteia a queda dos anjos. A masturbação corre solta como obsessão de uma posse de afeto nunca conseguida e habitualmente adiada. Tanto que o personagem tem a sua “upp”, unidades de punheta, contagem regressiva da esterilidade do legado. A comparação do menino com o coelho, animal que cava seus buracos (ou a própria cova), encaixa na idéia de procriação inconseqüente. A criança está ali por acidente, sobrevive a uma indiferença generalizada e vai descobrir seus inimigos íntimos dentro de si. “Vale que coelho é um bicho que fode.”

Com um rigor satírico e iconoclasta, O azul do filho morto mostra que sofremos do pânico de olhar o que ficou no ralo.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho