Infância recriada

Contos de "Santos de vento", de Celina Castro, evocam uma menina para falar de sentimentos de gente grande
01/04/2012

A infância é um pedaço da vida que fica mais rico e cheio de significados à medida que o tempo passa. Estamos sempre recriando a nossa infância, deixando-a mais feliz, mais aventureira, mais gostosa, mais como os filmes e livros sobre crianças felizes dizem que a infância é. E, para alguns, a infância revisitada é o lugar onde as grandes descobertas da vida foram feitas. Claro que, à época, não tínhamos o discernimento para entender o que estava acontecendo. Víamos os adultos de baixo para cima, olhávamos mais pernas que rostos, normalmente, e as coisas do “mundo de gente grande” não nos diziam respeito. É só quando entramos nesse mundo que recobramos o sentido de tudo o que aconteceu (ou inventamos um, o que também dá no mesmo, rigorosamente, afinal, a memória prega peças).

Até certo ponto, Santos de vento, livro de estréia da jornalista Celina Castro, é uma volta a uma infância plena de significados. Em 14 dos 17 contos, a protagonista é uma menina atenta ao mundo ao seu redor, e que gosta de contar o que acontece de acordo com o seu ponto de vista. Porém, não se trata de uma obra para crianças. Celina procura resgatar nessa narradora uma inocência que nós perdemos ao crescer. Para ajudar no resgate, a criança-narradora não mora em uma cidade grande, mas no interior de Minas (provavelmente). É na roça idílica que ela tem contato com o “mundo da gente grande”, onde a morte e a vida não são assuntos de criança, mas estão sempre ali por perto. Como no conto Jussara, em que o filho da protagonista fica emburrado ao perceber que o frango da Páscoa era a galinha amiga. Ou em Eufrásio, em que a criança conta que os adultos só permitem às crianças chegar perto do defunto porque haviam se esquecido delas.

Há bastante tristeza nos contos de Santos de vento, mas o livro não é triste. A tristeza vem dos temas tratados por Celina. Em Eu, por exemplo, a criança se descreve como “feiosa, magricela, cabelos espetados de lisos”. A partir dessa introdução nada otimista, vemos que a criança espera que o menino mais bonito da turma um dia a chame para ser seu par, o que não acontece nunca. Em Nero, temos a história da relação partida entre a menina e seu cachorro/anjo da guarda. Ao longo dos contos narrados pela menina, vemos fragmentos da sua infância e todos eles caminham na direção de certa melancolia, algo como um lugar onde estão as oportunidades perdidas.

Três contos dispensam a narração da menina, mas continuam ambientados no interior mítico do Brasil. Ele fala do improvável encontro do narrador com o diabo. Nossa seca traz um relato breve das agruras de um pequeno agricultor durante a estiagem que aflige sua região. E Jussara trata da diferença de perspectivas de vida (e de morte) de um adulto e de uma criança. Novamente, um dos pontos de ligação entre todas as histórias é a tristeza dos relatos. Todos os fragmentos se encerram com uma nota para baixo, quando se fala em sentimentos. Mesmo assim, essa melancolia não chega a deprimir o leitor, apenas o faz repensar como foi a sua infância, eventualmente.

Pecadilhos
Celina tem um texto claro e direto, sem rodeios. Não há longas digressões filosóficas, apenas o essencial, como convém a uma menina. Nesse sentido, Santos de vento cumpre o que promete logo na capa ao mostrar a silhueta de uma menina de tranças pensando (sonhando?), com imagens que pouco sentido fazem para os outros mas que para ela devem fazer todo o sentido. Porém, na maior parte dos contos parece que eles terminam um pouco antes da hora. Celina poderia ter insistido um pouco mais na narrativa de cada conto. Em alguns, quando sentimos que estamos perto de um clímax, logo vem o fim, meio abrupto, meio seco demais. Não chega a prejudicar a leitura, mas dá a impressão de que a autora queria terminar logo aquele momento para partir para o próximo.

No conto Ele também ficou forçada a aparição do diabo. Há alguma construção do clima, mas muito sutil para dar a sensação de que algo poderá acontecer mais à frente. Sabemos que algo acontecerá, pois o conto não se encerra, mas a possibilidade de que seja o diabo a aparecer é pequena e, quando isso acontece, não é que ficamos espantados ou sejamos surpreendidos. Ele aparece e desaparece e fim, não deixa um gosto estranho na boca do leitor, nem um susto, nada. Se houvesse uma preparação melhor, talvez o diabo nos metesse mais medo (ali, bem entendido).

Santos de vento remete aos santos do pau-oco, aqueles santos que parecem ser grandes e poderosos, mas que no fundo não valem uma pataca furada. Apesar disso, esses santos continuam por aí, dando o ar de sua graça (mas nunca a graça desejada) e eventualmente levando sopros de esperança para as pessoas, esperanças que logo se desfazem. Os santos de vento sopravam na casa da menina narradora, na Fazenda Ventania, lar de uma grande família dominada por uma matriarca que queria tudo na sua ordem. Mas até mesmo essa matriarca morre, e todo o poder que ela exercia mostra-se inútil ante a finitude da vida.

Santos de vento é um belo trabalho de estréia e mostra uma autora que, apesar de iniciante na ficção, já domina a palavra e a técnica narrativa. Se em alguns casos a autora poderia ter se demorado um pouco mais na elaboração de seus climas ou na preparação de seus finais, são pecadilhos que em nada comprometem o prazer da leitura. Esperemos o próximo.

Santos de vento
Celina Castro
Edith
100 págs.
Celina Castro
Nasceu em Candeias (MG), em 1954. Jornalista de formação, já havia participado das antologias Mamãe, vim só fazer uma visita rápida (Edith), Maus escritores (editada por Marcelino Freire e Vanderley Mendonça) e Antologia de haikai, organizada por Alice Ruiz e editada pela Black Demon Press. Celina também faz parte do coletivo Edith, 14 pessoas “apaixonadas pela palavra” que têm como objetivo publicar seus trabalhos literários, sendo seu coordenador-geral o escritor e jornalista Marcelino Freire. O trabalho coletivo já “vazou” das páginas e gerou vídeos e exposições de fotografias.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho