Indigesto mundo de mortes

Em "A morte sem nome", Santiago Nazarian constrói um relato onírico, escorregadio e ambivalente
Santiago Nazarian: prioridade à narrativa em detrimento a enredos lógicos e plausíveis
01/06/2004

Quando começamos a ler A morte sem nome, algo nos diz que vamos nos perder. A leitura é dispersa, aleatória, o texto não ajuda muito a juntarmos o quebra-cabeça dessa Lorena, personagem central que vaga meio a esmo pelas ruas de uma certa grande cidade em meio a amantes, álcool, cigarros e tentativas reais e imaginárias de suicídio. Mas aos poucos a leitura vai avançando e quando damos conta já estamos imersos no novo romance do escritor paulista Santiago Nazarian. Intercalado por pequenos espaços, o livro não pretende mesmo amparar o leitor. Pelo contrário: A história é esgarçada, a linguagem é entrecortada, rápida, composta quase em quadros separados, e a protagonista, uma mulher de 35 anos, mimada, voluntariosa e de caráter duvidoso, a toda hora faz afirmações para logo em seguida negá-las. Mas é assim mesmo, em meio aos saltos, que vamos avançando e vendo surgir essa louca e despudorada Lorena e sua (com) pulsão por morte e algum sexo, no livro elementos bastante próximos. Ela é uma suicida que vaga e se arrasta (literalmente) pela cidade e apartamentos nada assépticos, reflexo urbano, e que está vez ou outra limpando um chão que sangra, imagem recorrente e que reitera ainda mais sua obsessão pela morte. Quem sabe morta, ela consiga alcançar a redenção por meio do amor? Da palavra, que não se cansa de explorar em frases interrompidas?

Os amantes de Lorena vão do adolescente de 14 anos Davi, que ela conheceu num ponto de ônibus; do feirante Mako ao garçom Miguel, que a leva para percorrer uma estrada deserta. Os relacionamentos são intensos, mas escorregadios e resvalam para um quê de loucura e melancolia, descritos num mundo que lhe parece sempre indigesto, sem graça, entediante. Não é à toa que ela se mata diversas vezes. Conscientemente ou não, o seu fio da navalha é a anarquia, o sexo desenfreado, o escracho, o cinismo, a irreverência. Sua fala perpassa isso e a toda hora se confunde com um ceticismo diante de uma modernidade fria e de gente obtusa. Junto, isso resulta numa insuportável intolerância com o mundo, com as coisas e com as pessoas que a cercam.

Enquanto vaga errante pela cidade, Lorena elocubra o tempo todo. Ela quer a redenção sim, mas não sabe como. Quer se distanciar cada vez mais das pessoas e do mundo, do seu mundo, mas, carente, também quer ser amada. Talvez por isso se comporte sempre como se fosse se partir ou se romper. Por dentro (com sua consciência ferina e volátil) e por fora, inebriada em seu desejo de se matar. Por dentro e por fora, texto e protagonista a serviço de uma representação (fugidia, nunca objetiva) de uma certa sociedade urbana brasileira, numérica, individualista, egoísta, indiferente, caótica, dispersiva. A personagem se soma muito bem a esse espaço contemporâneo da cidade, que, assim como ela, não aponta saídas, daí a sua fixação pela idéia e prática da morte. Para explorar isso, o autor não dispensa o kitsch em algumas passagens nem a morbidez, isto porque sua história tem um quê de gótica, de trágica, de humor negro, ferino. De mordacidade com o establishment. E também não dispensa o exagero, o excesso, o hiperbólico, elementos encontrados tanto na personagem quanto na narrativa, construída através de reiterações. Essa é a opção do autor que, antes de prejudicar seu livro, faz dela uma busca por um estilo próprio.

A morte sem nome pode ser lido como um relato onírico, escorregadio e ambivalente que se confunde com uma longa noite de delírio e de pesadelo. Enquanto Lorena narra seus suicídios (se atira do nono andar, é esfacelada por um ônibus ou dispara a pistola contra si), a narrativa avança em torno de um relato verborrágico ao extremo. São repetições e reverberações que circulam de forma labiríntica, ora confirmando, ora acrescentando algo. Parece-me que essa é a intenção do autor, a de assumir certo exagero, elaborando frases que se chocam, se complementam, mas que às vezes também se negam:

“Meu coração batia por ninguém. Esparramava-se no chão. Escorria por meu queixo. Manchava minha blusa. Embaçava minha vista. Esvaziava meu estômago. Depois do corte fatal, achei que pararia. Morta e sem coração. Sem palpitações. Mas meu coração ainda batia, por mim mesma. Esparramava-se no chão. Escorria por minhas axilas. Manchava a minha calça. Tapava meu nariz. Esvaziava meu estômago. Me dava fome”. (p. 48)

Ao lado dos poucos fatos e das muitas sensações da sua Lorena, temos ainda a construção (também esgarçada) de uma memória (da menina de dez anos) que vem e volta, junto a uma memória de uma cidade (Porto Alegre?) que se costura pontilhada pelo trânsito caótico e pelos seus desencontros:

Cidade estupidamente urbana. Asfaltos, cimentos, subidas e descidas. Sempre empurrando a gente para os bueiros, hein, danada? Por isso, nos dias de chuva, inunda tudo. Muita gente entupindo. (…) Esconderia o barro e a lama sob uma camada espessa de concreto. Muito higiênico, pode parecer, até alguém cuspir no chão. E, se chovesse, eu transbordaria. Ah, eu sempre fui tri-urbana”. (p. 55)

Os cacos da rua que a personagem monta e desmonta qual Sherazade, enquanto narra suas andanças e seu descrédito, vão servir ainda para derrubar nossas certezas, verdades que se esvaem perante sua lucidez, consciência insana e obsessiva de uma mulher desamparada. Com isso, vamos acompanhar a sua dolorosa experiência, revertida na sua insistência em dar cabo à vida. A idéia obsessiva do suicídio parece vir dessa consciência, dessa dor conjugada a um sombrio sentimento do mundo, parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade. É essa a sensação que fica de sua personagem, enquanto ela vaga pela cidade com seus eleitos por acaso. Ela tem a brava lucidez das almas pequenas, simples, com a devida efemeridade das coisas: “Daqui a uma hora, trocam os lençóis e nada sobra”, diz Lorena com a sua consciência de finitude e repleta de um gozo intermitente.

Dividido pelos capítulos Os suicídios, Os funerais e O anjo da morte, A morte sem nome trata-se de um romance raramente visto no Brasil. Por vezes inverossímil (o que, em seu caso, não tem importância), o texto lembra a narrativa de Clarice Lispector e do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (Morangos mofados), sobretudo este. Tem ainda algo das protagonistas Stella Manhatan, romance de Silviano Santiago, e Lúcia McCartney, conto de Rubem Fonseca. Influências que podem até não ser reconhecidas, mas que certamente inclui o escritor nessa “família” de autores que priorizam a narrativa em detrimento de enredos lógicos e plausíveis.

Se literatura é experiência, Santiago Nazarian demonstra ter a mais importante, que é a experiência do texto. Como se tivesse sido escrito num jorro, num continuum intenso, sem oferecer tréguas ao leitor, ele consegue “esconder” com isso a árdua simetria do seu romance, trabalho literário bem ancorado por um narrador feminino em primeira pessoa que descreve sentimentos de desamparo e desamor. Segundo livro deste autor de 27 anos (estreou em 2002 com o romance Olívio), A morte sem nome é uma grata surpresa e vem confirmar ainda mais o seu talento.

A morte sem nome
Santiago Nazarian
Planeta
205 págs.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho