Incompleta Ana C.

Ana C. é duas. Uma para os homens, outra para as mulheres. E essa foi uma de suas grandes sacadas
Ana Cristina César, autora de “Poética”
03/06/2014

“Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos com os olhos, do silêncio que não é mudez.” O trecho de Encontro de assombrar na catedral representa muito bem o que é a poesia de Ana Cristina César: sofisticada e simples, plena de silêncios que de modo algum indicam falta de significado. Pois Ana C. foi capaz de alcançar um dos maiores êxitos que um poeta pode desejar: sua obra produz no leitor a sensação inconfundível de que entramos em contato com uma verdade que até já fazia parte de nós, mas que não éramos capazes de verbalizar. Tanto no Brasil dos anos 1970 até hoje.

Se isso fosse uma crítica competente, devia falar do lugar de Ana C. na poesia marginal, ao lado de Cacaso e Chico Alvim. Tal consideração, feita pelo escritor Reinaldo Moraes entre os textos críticos compilados no volume Poética, aplica-se também a esta resenha. Com certeza essa relação já foi feita dezenas, quem sabe centenas de vezes. Mas o que ela quer dizer? Que Ana Cristina César trocava cartas com Paulo Leminski, que era parte da geração mimeógrafo? Comparar e classificar poetas, por inevitável que seja, pode muito bem ser inútil. A nossa necessidade de compartimentar para entender é muito pequena diante da capacidade de criar de gente como Ana C. – gente que mistura Roberto Carlos, Banho de lua, Mia Farrow e Greta Garbo com Walt Whitman, Jack Kerouac, João Cabral e Clarice Lispector. Como diz a própria autora, é uma mulher moderna, essa desconhecida.

Entrega total
Vira e mexe, a publicação póstuma de um livro tem características contrárias às intenções do autor. Toda poesia (Companhia das Letras, 2013), de Paulo Leminski, por exemplo, traz o livro Quarenta clics em Curitiba (1976) sem as fotografias que originalmente acompanhavam os haicais. Mas no caso de Poética, a seleção de textos acrescenta sem tirar pedaços. Compõem o livro críticas de amigos e um trecho do diário do pai da poeta, escrito no dia em que Ana C. nasceu. Está tudo entregue, como na sua obra mais conhecida, A teus pés (1982); como se dissesse: estou entregue, rendido, toma aqui estes textos que foram vencidos, não os quero mais.

A entrega de Ana C. também está presente na sua foto clássica, de blusa listrada, mãos ao redor do pescoço e cotovelos voltados para frente. Ali, a poeta lembra o Gato de Cheshire, de Alice no país das maravilhas: irônica, linda, enigmática, um sorriso desafiador. E de fato a leitura de seus poemas é como o diálogo entre Alice e o gato, cheia de lacunas, aparecimentos e desaparecimentos, imagens preciosas e marcantes.

Aliás, talvez sua leitura seja ainda mais marcante para uma mulher. Quando Drummond diz no Poema de sete faces que as casas espiam os homens que correm atrás das mulheres, ou quando ele se descreve como o sujeito por trás dos óculos e do bigode, o poeta coloca as mulheres do outro lado da vitrine; espiamos (nós, mulheres) esse homem que fala do seu bigode – nem temos ideia do que é ter um. Aí vem Ana C. e escreve que acordou com coceira no hímen, e que na noite de Natal estava tão bonita que era um desperdício…

Ana C. é duas. Uma para os homens, outra para as mulheres. E essa foi uma de suas grandes sacadas.

O não dito
Se uma das características mais cativantes de sua obra é essa capacidade maravilhosa de despertar o voyeur no leitor – que tem a sensação de espiar pela fechadura a intimidade alheia de uma mulher, como escreveu Caio Fernando Abreu –, a presente coletânea dá a sensação de que a porta se abriu um pouquinho e já podemos espiar pela fresta. E o que vemos são muitos poemas que passaram e que não passaram pelo crivo da autora, não foram publicados nem foram destruídos. Exigente, ela talvez achasse que não fossem tão bons; ou talvez não tivesse tido tempo de publicá-los.

Ana C. morreu aos 31 anos. Cometeu suicídio, jogou-se da janela do apartamento de seus pais no Rio de Janeiro. A incompletude se expande: como julgar completa a obra de alguém que morreu tão jovem? A leitura de Poética aumenta essa sensação porque sabe-se que ainda há o que ficou de fora. Mas mesmo que o volume contivesse todos os seus escritos, não adiantaria, pois com Ana C. nem tudo está dito; mesmo que contivesse tudo, quem é que pode dizer que terminou alguma coisa na vida?

Poética

Ana Cristina César
Companhia das letras
504 págs.
Ana Cristina César
(1952-1983), carioca, formou-se em Letras pela PUC-Rio, com mestrado em Comunicação pela UFRJ e em Teoria e Prática de Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra. Começou a criar poemas aos quatro anos, ditando-os para a mãe, que os escrevia. Publicou Cenas de abril (1979) Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980) em edições independentes. Em 1982, lançou A teus pés pela editora Brasiliense.
Roberta Ávila

É jornalista. Escreve no blog http://ficcoesdaminhavida.blogspot.com.

Rascunho