O gaúcho Vianna Moog foi dos poucos que, tendo apoiado a Revolução de 1930, voltou-se contra os excessos do movimento e passou a fazer parte da oposição constitucionalista, cristalizada na Revolução de 1932. Mas divergir do tenentismo e de Getúlio Vargas custou-lhe o desterro político: do Rio Grande do Sul, onde desempenhava a função de fiscal de consumo, foi transferido compulsoriamente para o Amazonas, depois ao Nordeste, mais uma vez ao Norte, em seguida para Minas Gerais, só retornando à terra natal após a anistia de 1934. Semelhante à história de outros intelectuais condenados ao ostracismo, não o impediram de escrever — mas, ao contrário de Ovídio, que nas Cartas pônticas, enviadas de seu exílio no litoral do Mar Negro, está sempre pronto a choramingar, Moog sobreleva a pena, torna-se o ensaísta que esmiúça diferentes aspectos da cultura, compondo o que chamou de “crônica da resistência”. Essa “imaginação rebelde à ficção e à fantasia”, como ele próprio se definiu, ultrapassou, contudo, o ensaísmo e concebeu a novela Uma jangada para Ulisses (1959) e os romances Toia (1962) e Um rio imita o Reno, publicado em 1938.
O título deste último engana o leitor ao sugerir semelhança geográfica. A imitação, neste caso, expõe falsa aparência, ilusões. A analogia não se concretiza — e desempenha, nas lucubrações do protagonista, Geraldo Torres, o papel de uma quimera.
Esse engenheiro amazonense, leitor de Goethe, resume seu idealismo nas primeiras páginas do romance: possuir entendimento e ação, pois o primeiro “alarga, mas paralisa”, enquanto a segunda “vivifica, mas limita”. A realidade, entretanto, mostra-se outra. Duas forças impedirão o protagonista de alcançar seu objetivo: os imigrantes alemães, fieis ao nazismo, que controlam a cidade de Blumental, para onde Geraldo é transferido, e sua própria personalidade, refém da melancolia.
Desde as primeiras horas na cidade, o engenheiro deixa-se dominar pelo estranhamento:
Onde estaria? Percorreu novamente os pontos que sua retina acabara de visualizar. Na praça, ranchos loiros de moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés universitários bebiam descansadamente o seu chope. Pareciam sentir-se ali tão à vontade, como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munique. Geraldo então atentou ainda mais para o quadro, retesando a atenção. Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco.
Os sinos plangeram dentro da noite que se adentrava. Onomatopeia da melancolia. Como se estivesse ouvindo novamente o prelúdio do piano, um tumulto, uma angústia interior agarrava-lhe as entranhas. Geraldo teve vontade de chorar. Sentia saudades do Brasil.
Mais que inadaptação, Geraldo Torres experimenta o desenraizamento, definido por Simone Weil em L’Enracinement: não encontra ali nenhum elemento que o ligue às suas origens, à sua cultura. Preso a uma comunidade da qual não participa realmente, onde não descobre os “tesouros do passado” e os “pressentimentos do futuro”, circundado por uma cultura artificiosa, em tudo apartada das tradições nacionais, o protagonista submerge num incontrolável sentimento de exclusão, reforçado pelas veladas manifestações de racismo que acabarão por expulsá-lo da cidade.
O personagem, entretanto, possui psicologia complexa. Experimenta o desencontro cultural às vezes de forma paroxística, agarrando-se com desespero às lembranças da infância amazonense, às características paternas, às lendas contadas pelos familiares. Saudosista, supersticioso e tímido, o engenheiro descendente de indígenas, filho de um falido coronel do Ciclo da Borracha, recusa o preconceito — “Era o sangue dos nheengaíbas que lhe corria nas veias. Como sua mãe, não distinguia entre brancos, judeus, sírios, pretos e caboclos”—, mas não consegue vencer o complexo de inferioridade: apesar do amor sincero de Lore Wolff — a jovem responsável pelo “prelúdio do piano” que ele se habitua a ouvir todos os dias, filha da mais poderosa família germânica local —, quando esta, pressionada pela mãe, deixa de encontrá-lo, uma conclusão irônica esconde a falta de amor-próprio: “A sua face branca de ariana tinha tocado o rosto queimado de índio. Ficara decerto manchada de jenipapo”. Obedece, depreciando-se, ao telegrama que anuncia a suspensão das obras de saneamento básico em Blumental, das quais era o responsável, e a imediata transferência: “Minha nudez no que diz respeito a intenções, pensamentos e sentimentos (…) se parece, de certo modo, com a nudez primitiva dos índios”.
Quanto a Lore, decide não lutar para tê-la, preferindo o caminho da sublimação: transforma a mulher real, que o deseja sinceramente, em uma “Lore filosofante, na qual os traços femininos haviam desaparecido”. E quando, por um momento, o amor quer derrotar as evasivas, Geraldo, certo de que será impossível esquecê-la, pressente o “gosto amargo das horas de saudade e solidão”, mas escolhe a pior das desculpas, dizendo a si mesmo: “Que grande fardo, o sentimentalismo”.
Trato com as palavras
O cuidado de Vianna Moog abarca a linguagem, a arquitetura do romance e os personagens, criando figuras com características particulares e voz própria. Veja-se a antagonista, Frau Marta, matriarca dos Wolff, modelo acabado de antissemita: seus preconceitos não surgem da adesão cega a Hitler, remontam aos horrores da Primeira Grande Guerra. Discordamos de suas justificativas, mas a fúria argumentativa que revela, inclusive nas discussões com o médico Stahl — personagem fascinante, pronto a denunciar a incoerência desses supostos cristãos apoiadores do nazismo —, fica a um passo de soçobrar quando Lore é atacada pelo tifo:
(…) Frau Marta sentou-se na poltrona de couro, aniquilada. E teve a dilacerante impressão de que se sentava no banco dos réus, diante de tremendos juízes invisíveis que iam julgá-la. Mas… Julgar por que crime? Entrecerrando os olhos, viu-se Frau Marta a dialogar consigo mesma. As duas partes do eu mais íntimo discutiam frente a frente. O seu Doppelgänger, de feições indefinidas e de voz longínqua, dizia: — A culpada da doença de Lore é tu. A outra parte, que tinha exatamente as suas feições e que estava como ela sentada na poltrona de couro, respondia:
— Culpada, por quê?
— Obrigaste o engenheiro a ir embora; fizeste com que os outros o expulsassem. — Mas que tem a ver Geraldo com a doença de Lore? — O Doppelgänger investia, inexorável: — Sem a Hidráulica o tifo se alastra. O que Lore sofreu por causa de Geraldo deixou-lhe o organismo enfraquecido, sem defesa. — E pensas que eu não sofro vendo Lore em perigo de vida, ardendo em febre, sofrendo, gemendo, delirando? — Nunca foste carinhosa com ela. — Passo as noites em claro. — Isso não melhorará a sorte.
Frau Marta comprimiu as pálpebras com a ponta dos dedos, longamente. O diálogo continuou, implacável (…).
Sem criar esquematismos, o romance expõe as divisões políticas, o populismo estado-novista, a imposição da cultura nazista — com desfiles de tropas uniformizadas e a biblioteca pública infestada de autores antissemitas —, a esperança e o congraçamento dos mais simples, acima das diferenças de nacionalidade, até chegarmos ao clímax da visita de Otto, aguardado primo dos Wolff, que derruba, no perfeito diálogo do Capítulo 20, as ilusórias certezas da família.
Lástima
É lastimável que Um rio imita o Reno não tenha lugar de honra em nosso cânone. E mais lastimável ainda que estudiosos o tenham classificado, de forma superficial, como romance de tese, depreciando-o a ponto de transformá-lo em mero “pendant de Canaã”, para citar as injustas palavras de Massaud Moisés. Aliás, o que mais existe no romance é exatamente o que Massaud afirmou não ter encontrado e que Graça Aranha mostrou-se incapaz de construir: “desenvolvimento imaginário do entrecho e dos protagonistas”.
O romance concretiza a lição de Simone Weil: nenhuma cultura pode ser modificada de forma arbitrária — “a destruição do passado é talvez o maior crime”. Ao contrário do que anunciam as propagandas revolucionárias, “o futuro não nos traz nada; não nos dá nada; somos nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe a nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós”. Daí nasce parte da angústia do protagonista: vencer os preconceituosos e ficar com Lore significaria aceitar o desenraizamento, isto é, romper não apenas com sua história pessoal, mas com sua própria cultura. E Geraldo Torres sabe, de forma intuitiva, que “de todas as necessidades da alma humana, não há nenhuma mais vital do que o passado”.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Fran Martins e Poço dos paus.