Quando aquela voz se torna insuportável, quando ela perfura olhos e ouvidos, não há mais nada a fazer senão obedecê-la. Quem já a ouviu diz que essa voz, tão conhecida como sua própria, é mais forte do que qualquer tipo de controle sobre seu corpo. Domina as mãos, os pés, a cabeça. Faz levantar, pegar uma corda, pendurá-la numa árvore e nela repousar o pescoço, que em breve vai se partir. E tudo vai desaparecer. Para sempre. Dizem que com Judas foi assim. Que os demônios (é com eles que, às vezes, a consciência é comparada) o perturbaram tanto, que aquelas vozes o atormentaram tão imensamente dizendo que ele era o responsável pela morte do filho do Homem, que ele não suportou e deu cabo delas da forma mais rápida que encontrou. Preferiu não ver mais o sol a ouvi-las novamente.
É mais fácil associar os suicidas a gênios incompreendidos, a pessoas depressivas, a homens e mulheres que têm segredos terríveis ou a malucos — a pessoas que ouvem as tais vozes. Fazer isso é, também, muito mais literário, romântico, artístico. Mas é óbvio que não se pode resumi-los, os suicidas, a espíritos livres, geniais e atormentados, a pessoas que têm algo a esconder ou que carregam um peso maior do que o que podem suportar e preferem partir para o desconhecido. Seria muito raso pensar desta forma. Acabar com a própria vida não é literatura. Não é arte e, muito menos, romântico. É uma decisão solitária que, na maioria das vezes, não tem uma razão lógica, mas também não é de todo maluca — sem entrar aqui em juízo de valores ou coisa que o valha.
Camus disse que os sãos pensam, pelo menos uma vez na vida, em suicídio. Há quem concorde, quem discorde, e quem pense: “Ora, e por que não?”. Esse, aliás, é o questionamento do protagonista do livro Os suicidas, do argentino Antonio Di Benedetto. Um jornalista medíocre que tem sua chance na agência de notícias quando o chefe lhe pede para que faça uma série de matérias sobre suicidas. O que, afinal, leva uma pessoa a acabar com sua vida? A matéria, assim como todos nós, já nasce com a morte dentro dela. Quem trabalha com jornalismo sabe: em geral, não se divulga suicídio — a menos, é claro, que seja de uma pessoa bem famosa, como Getúlio Vargas ou Kurt Cobain, por exemplo. Mesmo assim, o jornalista aceita o desafio. Afinal, ele tem motivos pessoais para isso: seu pai se matou, aos 33 anos. E em breve se aproxima, para ele mesmo, a idade de Cristo — como gritam nos bingos da vida.
Já disse uma vez — ao falar de um outro livro com o mesmo tema, há alguns Rascunhos (O suicida feliz, de Paulo Nogueira) — que é complicado escrever sobre suicídio sem cair na pieguice. E, novamente, reconheço que alguns escritores conseguem a façanha. Di Benedetto, contemporâneo de Borges, é um deles. Escreve de forma profunda, mas muito leve. Trata do assunto espinhoso com talento. Não cai no óbvio. A forma como a história se desenrola mostra um autor preocupado não em julgar o suicida ou em rotulá-lo. Mas em mostrar as nuanças que permeiam esse ato. Desespero? Medo? Coragem? Tédio? Não interessa. Mesmo. Mas, por não se tratar de um estudo científico ou de um tratado sobre o suicídio, é óbvio que Os suicidas acaba se agarrando em alguns aspectos mais literários. Pelo livro desfilam personagens secundários — os objetos de estudo do jornalista — que demonstram, além da vontade de se matar, outra característica em comum. Têm a vida morna. Sem sal. Mesmo assim, o que sobra, no final, é o corpo rígido e estendido na mesa do IML. Cru assim. Solitário assim. “[…] qualquer um, em qualquer momento, pode se lembrar que vai morrer e medir a importância do que vai perder, a vida, porque ‘não se volta’, não se volta a viver.”
O livro é fluido. A linguagem tem frases curtas, orais, visuais. Deve ser lido de um fôlego só. Deve ser lido como um causo dos bons. Nem mesmo as várias citações (que fazem parte da pesquisa sobre o suicídio para o fechamento da matéria, às vezes bastante técnicos) são suficientes para quebrar o ritmo da leitura. Pelo contrário. Enriquecem a obra. Corroboram para a idéia de Di Benedetto: a de que os suicidas não têm sempre as mesmas razões para dar ouvidos às vozes interiores. Que eles têm tantos motivos para dar cabo de suas vidas quanto os têm os que querem preservá-la a todo custo.