Imerso no mundo cão

O romance policial "1935", de Rafael Guimaraens, mistura fatos históricos, pessoas de diversas procedências e crimes para oferecer um painel de Porto Alegre
Rafael Guimaraens, autor de “O espião que aprendeu a ler”
02/06/2021

Um romance cuja epígrafe apresenta uma pequena citação de Os ratos (Dyonelio Machado) já é digno de atenção. Aliás, Dyonelio participa da narrativa. E não só ele. Outras figuras históricas do Brasil da década de 1930 são mencionadas ou circulam pela obra: Getúlio Vargas, Benjamin Vargas, Filinto Müller, Flores da Cunha, Apparício Cora de Almeida, Waldemar Ripoll, Breno Caldas, Luís Carlos Prestes, Erico Verissimo, Rubem Braga, entre outros. Claro que barnabés como Naziazeno — protagonista de Os ratos — e outros bem abaixo de sua condição miserável também estão na obra e ditam o verdadeiro tom do romance policial 1935.

O mérito de mostrar acontecimentos em que participam pobres-diabos e personalidades históricas brasileiras da década de 1930 cabe a Rafael Guimaraens. Neste novo livro, composto em grande parte durante o isolamento decorrente da pandemia da Covid-19 em 2020, o autor mistura fatos históricos, figuras graúdas e crimes para mostrar a Porto Alegre que se prepara para as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha (1835-1845). O enredo também dá destaque à relação conflituosa entre os que estão politicamente à esquerda e à direita e as primeiras sombras funestas da extrema direita (o nazismo) na vida nacional.

A figura central do romance é o repórter Paulo Koetz, responsável pela seção policial do jornal Correio do Povo, às voltas com uma Porto Alegre que cresce, mas não consegue ocultar as mazelas e a violência que vêm na esteira da modernização. Em meio às mudanças operadas na capital gaúcha para sediar o centenário da Guerra dos Farrapos, o misto de repórter e detetive cobre alguns crimes que podem manchar a reputação de alguns nomes de políticos e figurões da época. Quando os crimes envolvem a ralé da cidade, acabam só servindo de chamariz para vender mais jornal.

A narrativa é bastante cuidadosa na recuperação de época. A impressão que se tem é estar numa sala de cinema assistindo a um filme sobre o que estava ocorrendo em Porto Alegre e, por extensão, no Brasil, no ano de 1935. A propósito, ao longo do romance, Paulo, o narrador que se revela um aficionado por fitas de cinema, elenca inúmeros atores e atrizes que eram sucesso na época.

Enquanto percorre “o submundo escuro, sórdido e degradante por onde perambulam os esquecidos pelo mundo chic — marginais, desordeiros, proxenetas, cafetinas, gigolôs, gatunos, meretrizes, punguistas, falsários, bicheiros, traficantes de estupefacientes, ébrios contumazes, contraventores de todo tipo e vadios da pior espécie”, Paulo vê semelhanças entre alguns ídolos do cinema com as pessoas que cruzam seu caminho de detetive e repórter.

Romance noir
Se Paulo Koetz fosse comparado a alguns detetives dos romances policiais, certamente estaria distante de Arsène Lupin, Sherlock Holmes ou Hercule Poirot — invenções felizes de Edgar Allan Poe, Conan Doyle e Agatha Christie — notabilizados pela capacidade de solucionar enigmas intrincados por intermédio de elucubrações mentais, sem passarem por algum perigo físico, sem se envolverem em perseguições, etc.

Sem nenhum demérito, o repórter que vai se transformando em detetive ao longo de 1935 fica melhor na companhia, por exemplo, de Sam Spade ou Philip Marlowe, criações de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, clássicos representantes do romance série noire. Como salienta Tzvetan Todorov (Tipologia do romance policial), este tipo de detetive, como os dois citados, “arrisca constantemente a vida, em resumo, está integrado no universo das demais personagens”.

É o que sucede a Paulo: em algumas investigações em que se envolve, ao mesmo tempo em que passa por riscos e estreita relações com vítimas, suspeitos, testemunhas, ele vai fazendo buscas e deduções para descobrir a autoria de algum crime.

Pela forma de atuação, por estar inserido no universo marginal onde os crimes ocorrem, Paulo se assemelha a esses detetives do romance negro. Como se destaca ao longo da narrativa de Guimaraens, o repórter é descrito como um detetive que existe e atua in loco, na convivência direta com o crime, com os criminosos, os envolvidos. “O leitor acompanha passo a passo suas vivências e investigações, muitas vezes a própria investigação engendra o crime”, conforme a caracterização que Sandra Lúcia Reimão faz em O que é romance policial (1983) sobre a atuação do detetive do romance noir.

Demais, características elencadas por Sandra Reimão, como “rude, vulgar, deselegante e sempre com um humor cáustico ao expressar-se, vive em dificuldades econômicas e trabalha profissionalmente”, que definem personagens como Spade e Marlowe, são as que os leitores também encontram em Paulo. O protagonista mora de aluguel num “quarto e sala”, veste-se mal, é frequentador de “baiucas: Café Oriente, Restaurante Venezianos, Royal, Pensão Mencke, Drink Mimi” e outros espaços pouco recomendáveis de Porto Alegre. Para desgosto do pai, ele deixou o curso de Direito, a noiva burguesa e a possibilidade de uma carreira promissora como advogado para ser repórter e uma espécie de Sam Spade tupiniquim.

Bem entrosado no seu papel de repórter e detetive, Paulo consegue com argúcia e certo destemor resolver alguns crimes ao longo da narrativa. Todavia, como observa Sandra Reimão, é típico neste detetive “não solucion[ar] necessariamente tudo aquilo que o problema implica”. É o que sucede com Paulo quando se propõe a auxiliar Apparício Cora a desvendar quais figuras políticas supostamente estariam envolvidas no “assassinato a machadadas em Rivera” de Waldemar Ripoll.

A certa altura da narrativa, o próprio Cora morre. A versão oficial é que, num restaurante, dera um tiro na própria cabeça diante da amante. As investigações do repórter evidenciam que houve um assassinato no qual existiria a possibilidade de envolvimento de figuras importantes da sociedade, mas nada disso prospera, já que a comissão de inquérito aponta a “ausência de crime e considera a morte do doutor Apparício Cora de Almeida como resultado de uma funesta e imprudente brincadeira que pretendeu fazer com seu próprio revólver.”

Movimento narrativo
Acompanhar o protagonista por bares, boates, ruas e mulheres suspeitas é o que dá movimento e agilidade aos 13 capítulos cheios de peripécias de 1935. Não faltam, entre outros casos investigados por Paulo, o de “Mário Couto, médico e comunista”, morto pela polícia, o de um pobre funcionário público assassinado no rio Guaíba, a mirabolante história da “moça de sapato vermelho” cuja cabeça estava “praticamente separada do tronco”. Todavia, as dificuldades de resolução de alguns crimes sempre se avolumam quando, entre os envolvidos, existem figuras importantes.

Não é só o mundo cão que cerca a vida do repórter-detetive. Outro enigma surge na narrativa e, diferentemente de outras situações em que investigava de fora algum fato ocorrido, desta vez o herói acaba dentro do redemoinho de acontecimentos. O início da nova investigação começa quando, junto com antigos amigos da faculdade, Paulo acaba numa noitada com “as divas do Variedades”, onde encontra “artistas usando roupas acetinadas, com rendas e transparências, soutiens, corpetes, cintas-ligas”. Lá conhece uma jovem ruiva — Juliette Foillet, misto de cantora e dançarina — pela qual se apaixona de imediato e acaba correspondido.

À medida que aumenta a intimidade do casal, o protagonista percebe que existe algum segredo que envolve o passado da namorada. O horror de Juliette à “bandeira com a cruz suástica”, à “braçadeira com a suástica” que vê numa foto do sobrinho de Paulo são pequenas pistas que inicialmente deixam Paulo sem saber exatamente como juntá-las e dar-lhes sentido. Curiosidade e ciúme levam-no à decisão de descobrir o que há por detrás de sua bela e enigmática Juliette. À procura de pistas, Paulo invade o escritório de um suposto contrabandista de bebidas e faz descobertas estarrecedoras sobre tráfico de mulheres europeias destinadas à prostituição. Neste comércio abjeto, a própria namorada está entre as aliciadas.

As descobertas de Paulo sobre “uma organização criminosa que há mais de 30 anos traz mulheres dos países do leste europeu para abastecer sua rede de prostituição” resultam, no fim do capítulo 12, numa antológica cena digna de filmes de ação, na qual Juliette e o narrador protagonizam uma “sucessão de episódios nonsense” para poderem escapar de seus perseguidores.

Sem nenhum prejuízo ao romance, o capítulo 12 bem que poderia ser o ponto-final da narrativa. Afinal, Paulo solucionou vários crimes, viveu uma apaixonada relação amorosa com Juliette, passou a compreender que a aplicação da lei e da justiça é distinta para graúdos e para a arraia-miúda e conscientizou-se de que opositores ao governo é caso de polícia. Estes bons ingredientes somados à descrição minuciosa de lugares e fatos históricos permitem a 1935 parecer com um bom roteiro de filme.

No entanto, após este suposto the end do livro, eis que um 13o capítulo, curto, depois de “dez anos! Guerra mundial, Estado Novo, bomba atômica, holocausto”, surpreende os leitores com um happy end. Sem este desfecho, alguns pontos que ficaram em suspenso na narrativa bem que poderiam servir de mote para uma continuação das aventuras — palpitantes — de Paulo e Juliette.

1935
Rafael Guimaraens
Libretos
336 págs.
Rafael Guimaraens
Nascido em 1956, Carlos Rafael Guimaraens Filho é porto-alegrense, jornalista e escritor. Entre ficção e não ficção, publicou 16 livros. Destacam-se Pôrto Alegre — Agôsto 61 (2001), Tragédia da Rua da Praia (2005), Teatro de Arena — Palco de resistência (2009), A enchente de 41 (2010), O sargento, o marechal e o faquir (2016) e O espião que aprendeu a ler (2019). Ganhou, entre outros prêmios, o Açorianos e o da Associação Gaúcha de Escritores.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

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