Imenso mundo imaginário

Listar os clássicos da literatura brasileira não é tarefa das mais difíceis, apesar das querelas que tal iniciativa pode suscitar
Guimarães Rosa, autor de “Grande sertão: veredas”
01/03/2006

Listar os clássicos da literatura brasileira não é tarefa das mais difíceis, apesar das querelas que tal iniciativa pode suscitar. Entremeio a tantas obras, sobressaem-se personagens para todos os gostos. Qual o mais interessante, o mais marcante? Difícil resposta e impossível consenso. Rascunho pediu a opinião de dez autores. Destaque para a obra de Guimarães Rosa, no ano em que Grande sertão: veredas completa 50 anos.

Pular carniça

A personagem da literatura brasileira que tenho sempre por perto é aquele Miguilim, que morava com o pai, a mãe e os irmãos em Mutum, terra criada ou recriada por Guimarães Rosa, em Campo geral (o poema que abre Corpo de baile). Rosa — isto me disse numa carta — considerava Miguilim o que tinha de mais seu. Eu o tenho como muito meu. Nele reencontro as perplexidades, as aflições e as descobertas feéricas do menino que fui, dos meninos que fomos todos nós. Miguilim nos sussurra ao ouvido: — O mundo é belo! E sai, descalço, das páginas do livro, a perseguir, comigo, os passarinhos. Fico com ele, porque não conheço outra personagem com quem possa, na memória e no sonho, pular carniça.

Alberto Da Costa E Silva é escritor, poeta, historiador, memorialista e diplomata. É autor de Ao lado de Vera, O parque e outros poemas, Consoada, As linhas da mão e O tecelão, entre vários outros. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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Altura estética

É impossível escolher, tal a variedade. Como altura estética alcançada não há personagem igual ao jagunço Riobaldo, de Grande sertão: veredas (de Guimarães Rosa), mas também citaria, entre minhas preferências, o quixotesco Coronel Vitorino Papa-Rabo, de Fogo morto (de José Lins do Rego), o picaresco Ponciano de Azevedo Furtado, de O coronel e o lobisomem (de José Cândido de Carvalho), ou, finalmente, a criação genial que é o Professor Aristarco Argolo de Ramos, de O ateneu (de Raul Pompéia), para mim um dos maiores romances da língua portuguesa de qualquer época.

Alexei Bueno é poeta. É autor de A chama inextinguível, A juventude dos deuses e A decomposição de J. S. Bach e outros poemas, entre vários outros. Mora no Rio de Janeiro (RJ).

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O óbvio ululante

O personagem mais interessante da literatura brasileira, óbvio, é Diadorim, assim como a obra mais interessante da literatura brasileira é Grande sertão: veredas, óbvio. Por quê? Porque é óbvio, óbvio. Mas como é óbvio demais, elegi aqui o Dr. Odorico Quintela, aquele cara que queria comer a Engraçadinha de qualquer jeito (no livro Engraçadinha, de Nelson Rodrigues). O Dr. Odorico Quintela é o brasileiro, é o cara. Ele, o cara, é aquele cara que nunca vai lá, direto ao assunto, e pá. O Dr. Odorico Quintela tem que armar toda uma parada em torno dos objetivos principais dele, proporcionando literatura a cada ação sua, dele. Ele não vai lá na Engraçadinha e manda na lata. Ele, o Dr. Odorico Quintela, acaba tornando tudo mais interessante do que é, do que seria, na verdade. Mas, agora, me ocorreu também o M. M. (de Joana a contragosto, de Marcelo Mirisola), aquele cordeiro em pele de lobo. É um personagem que deve ser acompanhado para sempre, a cada livro do Mirisola, para que, no final, na morte, tenhamos todo um panorama sobre a passagem pela terra da Geração 90 do Nelson (de Oliveira), da qual o Mirisola não faz parte.

André Sant’anna é autor dos romances Sexo, Amor e O paraíso é um lugar bem bacana. Vive em São Paulo (SP).

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Jagunço sem rancor

De todos os grandes personagens da literatura brasileira, forjados pelo gênio dos nossos escritores, um dos que mais me fascinam, sem dúvida, é o chefe de jagunços Zé Bebelo. Ou melhor: José Rebelo Adro Antunes, do Grande sertão: veredas, romance maior da nossa literatura, que está completando 50 anos. Conta-se que Guimarães Rosa, para criá-lo, teria se inspirado na figura do coronel Rotílio Manduca, também citado no livro; este sim, homem real, chefe em grandes armas, que fez e aconteceu nos sertões mineiros do norte nas primeiras décadas do século 20, até ser assassinado numa emboscada, lá pelos lados da Bahia. Dom Quixote dos gerais, a Zé Bebelo nada desanimava. Para tudo ele dava um jeito, por mais tortas que as coisas estivessem. Até tenho por mim que, se não existisse Dom Quixote, o livro, e também o personagem, nem Grande sertão: veredas, nem Zé Bebelo (coronel Rotílio Manduca à parte), também não teriam sido criados. “Zé Bebelo — ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, poder tudo, tudo alterar…”. Zé Bebelo, assim Riobaldo Tatarana, outro chefão jagunço de quilate, o descreveu. E Bebelo era assim mesmo: Zuretado. Azougado. Como um potro bravo, que não respeita freios. Mas que de tudo dispunha. Punha tento. Comandava com mão de bom mando. Com, ou sem o poder das armas. Sem rancor. Como dever ser.

Carlos Herculano Lopes é autor de O vestido, Entre BH e Texas, O pescador de latinhas, entre outros. Mora em Belo Horizonte (MG).

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Inviolável sinceridade

Estou voltando de uma viagem de 21 dias à Patagônia e ainda não voltei completamente. De cara, diria Rodrigo Cambará do Tomo I de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Autenticamente anárquico, vítima e herói das suas paixões, cordial e faroleiro, destemido sem ser fanático, libertário em estado puro sem mesmo se dar conta disso. Basta ver como aumentou o número de crianças que receberam seu nome na pia bastismal ou no distrito depois da primeira edição do livro. Um herói tão forte que conseguiu graças à sua inviolável sinceridade lugar em estantes que nunca haviam visto um livro. Rodrigo colaborou como poucos para a divulgação da boa literatura no Brasil e fez centenas de milhares de brasileiros procurarem na literatura o milagre da humanidade. Se me permitirem um personagem feminino, diria Emília, de Monteiro Lobato, boneca curiosa, humaníssima, que levou centenas de milhares como eu às bibliotrecas dos grupos escolares que — é incrível — existiam na época.

Fausto Wolff é autor de À mão esquerda, A milésima segunda noite, entre outros. Mora no Rio de Janeiro (RJ).

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O talismã da felicidade

Macunaíma, o anti-herói sem caráter, de Mário de Andrade. Se de um lado ele encarna o nosso lado mais antiético, oportunista, de outro expressa uma irreverência anti-racionalista, rebelde, que afirma a brasilidade em todo o seu potencial de sentimentos, emoções e razão. Nele, ética e estética se entrelaçam, através da teia de lendas e superstições, provérbios e evocações históricas. Macunaíma transcende tempo e espaço, ultrapassa os nossos paradigmas, plenifica a liberdade humana em busca disso que todos procuramos na vida muiraquitã, o talismã da felicidade. Ele expressa, por excelência, a oralidade brasileira.

Frei Betto é escritor. Entre vários outros títulos, publicou Entre todos os homens, Alucinado som de tuba, Treze contos diabólicos e um angélico e Fidel e a religião. Recentemente, lançou A mosca azul. Mora em São Paulo (SP).

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Quixote sertanejo

Sei que é vasta a galeria de retratos no ficcionismo brasileiro. Como bom nordestino, fico com um velho conhecido nosso: Vitorino Carneiro da Cunha. Talvez já tenham esquecido o nome por inteiro, mas o apelido, nunca! É o Papa-Rabo, personagem de Fogo morto, de José Lins do Rego, que considero uma obra-prima do romance universal. Apesar de aparentado com modelos pré-existentes, tem um sabor nativo, de bagaço de cana azeda e mel de fôrma. Vitorino é um velho rábula que anda escanchado em mula ruça, pelos sertões, de povoado em povoado, de engenho em engenho. Os moleques gritam o apelido à sua passagem e ele investe, de tabica no ar, da mesma forma que um antecessor seu leva no cinto a adarga, cavalga um animalejo e tem a lança em cabido. Também cavaleiro andante, ele se bate por uma dama — a Justiça. Solidário, sempre propenso a topar briga, Vitorino é desabusado no falar e no agir: sua língua afiada não deixa ofensa passar em branco e seu sentimento de solidariedade está sempre à disposição dos oprimidos. Enfrenta a polícia volante, cangaceiros, chefes políticos de baraço e cutelo, nos tempos do ciclo da cana-de-açúcar nas várzeas da Paraíba e de Pernambuco. É um justiceiro afoito, ingênuo, tagarela. Acredita em petições e habeas-corpus. Não conhece o medo. Acredita na justiça. É certo que, por ser um tanto desatinado, muitos lhe relevam os rompantes.

Mas Vitorino, no seu quixotismo sertanejo, é uma figura do povo que come poeira e dá a volta por cima. Sonha com o melhor, é um apóstolo do Bem. Figura caricata, de coração maior que a cabeça, Vitorino jamais se furta à resistência. Ele é o povo. Tirem do caldeirão brasileiro a escumalha, que é formada pelos traficantes de drogas e armas, pelos toxicômanos e ladrões de todos os calibres, e restará a água limpa e ardente de um Brasil pobre, mas digno, espoliado e no entanto esperançoso, traído e disposto a novamente crer, afável, espirituoso, comunicativo. O melhor povo do mundo num país que — reconheçamos — não o merece. Vitorino Carneiro da Cunha simboliza esse povo.

Hélio Pólvora é escritor e crítico literário. É autor de Os galos da aurora, Estranhos e assustados, Mar de Azov, O grito da perdiz, Rei dos surubins e Memorial de outono, entre vários outros. Vive em Salvador (BA).

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Característica de gênio

Para mim, o mais interessante personagem da literatura brasileira é Brás Cubas, como suas memórias compõem nosso melhor romance. Nele, Machado de Assis não se limita a traçar o retrato psicológico de um personagem, mas de uma sociedade inteira, com uma acuidade e profundidade que é a grande característica de seu gênio.

Liberato Vieira Da Cunha é escritor. Autor do romance O homem que colecionava manhãs, entre outros. Mora em Porto Alegre (RS).

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Filósofo, subversivo, inventor

 Não tenho dúvida em opinar que o mais interessante (além do mais completo e instigante) personagem da literatura brasileira é o jagunço Riobaldo Tatarana, de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Narrador do romance, Riobaldo também é protagonista do extraordinário épico roseano, revelando-se um filósofo da palavra, um subversivo na arte de falar e narrar, reinventando a linguagem dos sertões mineiros, além de ousar manter uma relação ambígua com um outro jagunço, Diadorim, ambivalentemente poético. Ousou até fazer um pacto com o Diabo, sem nele acreditar, inovando em relação aos Faustos de Thomas Mann e Goethe. Se Dom Quixote é, sem dúvida, o maior personagem da literatura mundial, Riobaldo Tatarana é, inequivocamente, o maior personagem da literatura brasileira.

Ruy Tapioca é escritor. Administrador de empresas, exerceu diversos cargos de gerência em estatais e também atuou como professor universitário. É autor de O proscrito, A república dos bugres e Admirável Brasil novo. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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O absurdo da existência

Num universo tão rico e variado como o da ficção brasileira, é difícil destacar um único personagem. No entanto, já que preciso fazer uma escolha objetiva, dou meu voto ao Louco do Cati, de Dyonélio Machado. A loucura do protagonista, explícita no título do romance, é um angustiante retrato do absurdo da existência humana.

Sinval Medina é autor de A faca e o mandarim, entre outros. Mora em São Paulo (SP).

 

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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