Há algumas regiões do Brasil que parecem ter parado no tempo. Em qualquer fazenda de qualquer lugar, por exemplo, onde são encontrados escravos, pode-se dizer que estamos em meados do século 19. No Nordeste, em algum vilarejo perdido ressequido de seca e miséria, os costumes não devem diferir muito daqueles de cem ou duzentos anos de idade. E na Amazônia, um outro mundo, além das tribos indígenas que ainda não foram contatadas pelo homem branco, haverá certamente vilas, agrupamentos humanos e outras formas que, se não tocadas ainda pela televisão ou pela eletricidade, vivem exatamente como viviam na época do Brasil Império.
Portanto, nada mais contemporâneo do que ler Contos amazônicos, de Inglês de Souza, livro que abre a nova coleção da editora, intitulada Contistas e Cronistas do Brasil. Publicado pela primeira vez em 1893, Contos amazônicos traz em oito contos e uma novela um retrato daquela região do Brasil que, guardadas as diferenças de cenário, não difere muito do que encontraríamos hoje caso lá visitássemos.
Inglês de Souza viveu entre 1853 e 1918. Mesmo tendo passado a maior parte de sua vida longe de sua cidade natal, Óbidos (PA), é essa cidade que compõe a capital geográfica de sua temática. De Óbidos, Souza percorre um itinerário literário pelas crenças e costumes da gente amazônica, em uma época de grandes transformações no Brasil.
Os contos relatam histórias acontecidas em um período que se pode dizer começa na Cabanagem, revolta dos nativos da região Norte contra a presença portuguesa após a Independência do Brasil, acontecida entre 1835 e 1840, até a Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870.
Mas longe de se preocupar com os aspectos históricos e seu desenrolar na Amazônia, Inglês de Souza está preocupado em mostrar a gente da região. No ensaio introdutório de Sylvia Perlingeiro Paixão, que também preparou essa edição de Contos amazônicos, ela comenta a influência do Naturalismo na literatura brasileira, e de como Souza foi na direção contrária a esse movimento. Enquanto os naturalistas davam destaque à descrição do ambiente natural, Souza foi mergulhar na alma do habitante da Amazônia. Há um certo quê de presunção de Souza, pois em alguns casos podemos sentir uma censura velada às superstições e crenças da população. Mas, na maioria dos contos, Souza deixa essa impressão de lado, e se limita a contar o que viu e testemunhou.
Assim, temos uma introdução ao universo das lendas da Amazônia. Conhecemos o agourento canto da Acauã, a nefasta influência do boto e seus encantos sobre as mulheres, a crença popular no poder da magia e das ervas, e de como elas podem ser mortais quando usadas de maneira errada, entre outros.
Mas nem só de lendas vive a Amazônia. Souza é hábil ao mostrar, em meio aos dramas que inventa ou relata (pois alguns dos contos podem bem ser adaptações de histórias populares), os costumes da gente da região. Já na página seis temos um belo exemplo de como estamos lidando com pessoas diferentes de um universo diferente:
“É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a ama num apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto.”
É uma gente simples, de valores simples, ainda não acostumada às grandes transformações do século. Afinal, será que o ribeirinho convocado às hostes imperiais para guerrear contra os paraguaios entende os motivos da guerra? E sendo ele filho único e responsável pelo sustento da mãe viúva com o produto de sua caça e pesca, entenderá ela as razões que levam a pátria mãe — e o ódio de um invejoso caçador alçado ao posto de recrutador — a solapar seu filho para enfiá-lo no Chaco paraguaio?
Assim, os costumes da gente ainda são aqueles de um catolicismo ferrenho — vide o conto O baile do judeu, e toda a carga anti-semita já expressa naquele distante tempo, temerosa à autoridade divina e seus representantes da terra. Mas também temerosa ao poder da Amazônia, quase ela uma outra divindade, criada pelo mesmo Deus, mas com uma vida autônoma.
E cindindo as classes que vivem nessa Amazônia, Souza também relata a opressão do mais fraco pelo mais forte, e como esses papéis podem mudar repentinamente, principalmente quando o homem vê-se motivado a exercer o que tem de pior em si, roubando, matando e praticando violências várias.
Não acredito que a Amazônia tenha mudado muito nesses 120 anos. Para quem lá já foi, é difícil não se impressionar com a imensidão dos rios, mares de água doce onde às vezes, de uma margem do rio, não se vê a outra, nem com a selva, enorme selva. Por isso a contemporaneidade do retrato amazônico de Inglês de Souza. Estamos destruindo-a rápido, é sabido, mas quem sabe não consigamos acordar antes do desatino total, e preservar paragens que desde o século 19 já impressionavam o culto e racional escritor com sua bruta natureza, para que nós também nos impressionemos.
O autor — Inglês de Souza foi advogado, jornalista e político, chegando a governador de Sergipe e Espírito Santo. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, tem quatro outros romances em sua obra: O cacaulista, História de um pescador, O coronel sangrado e O missionário, considerado um dos mais típicos do Naturalismo brasileiro.