Na abertura de João Cabral de Melo Neto: uma biografia, Ivan Marques lança movimentos bastante esclarecedores, como um enxadrista que, ao deixar seus planos evidentes, espera que a experiência e o conhecimento do jogo levem seu oponente a subestimar peças para as quais foi atribuída função essencial. Como biógrafo e leitor não são adversários, ele sabe que se trata de uma partida de ganha-ganha, na qual decifrar a estratégia — franca, embora sutil — nem de longe compromete o prazer da jornada.
Na primeira das 560 páginas, um fim de tarde carioca de 1940, encontramos o sério rapaz pernambucano com seus vinte anos recém-completados, outro escritor nordestino que chegara ao Rio de Janeiro com expectativa de fazer contatos, conseguir respostas, algum estímulo, janela de efetivo acesso ao meio literário. De pronto, também somos informados que o “verdíssimo e totalmente desconhecido” João Cabral de Melo Neto não percorrerá as longas e geralmente infrutíferas jornadas reservadas aos principiantes; em sua “curta temporada carioca”, munido apenas de uma carta de apresentação, ele não só já conhecera Murilo Mendes e Jorge de Lima, mas, de repente, vê-se “cara a cara com Carlos Drummond de Andrade, que era também o poeta de sua maior admiração”. E, frente a frente com o ilustre poeta (à época, chefe de gabinete de Gustavo Capanema, no Ministério da Educação e Saúde), o moço de Recife tem aparência e modos familiares ao mestre mineiro:
Estava impecavelmente arrumado, escanhoado e penteado. O cuidado com a aparência, o fato de jamais sair de casa sem paletó e gravata, a preferência pela cor branca, o uso do gel nos cabelos curtos e repartidos com precisão — tudo nele, mais do que o simples desejo de parecer elegante, expressava contenção e pudor. A coisa que mais detestava era chamar atenção. Tinha horror de se abrir, de ver sua intimidade devassada e dada em espetáculo às outras pessoas.
Sem demora, avançam no tabuleiro aqueles dois homens de gerações diferentes, com seus tipos pretensamente austeros, bem-comportados, gente da tradicional família brasileira; mais de perto, intelectuais um tanto ou muito inseguros, sem beleza ou carisma que chame atenção dos passantes e torne mais suaves as pedras do caminho. Ainda assim — gauche e improváveis —, poetas que sabemos fundamentais na história da literatura brasileira.
João Cabral e Drummond
Ivan Marques sabe duas coisas importantes. Em primeiro lugar, a maioria do seu público-alvo conhece bem as duas categorias frequentemente adotadas por cineastas, repórteres e biógrafos: a dos escritores extrovertidos, irresistíveis e até heroicos; e a dos tímidos, discretos, com aparência de burocratas; sujeitos aparentemente comuns, todavia capazes de obras inovadoras e admiráveis. Ele também sabe que esses mesmos leitores não ignoram a moldura onde João Cabral geralmente resta encaixado. Muitos deles podem ir além e corroborar que o pernambucano se tornou uma espécie de muleta-gracejo, usada sem pudor por entrevistadores e entrevistados para contrapor e enaltecer a figura apaixonante de um Vinicius de Moraes, por exemplo.
O autor de João Cabral de Melo Neto: uma biografia, então, não esconde que jogará com tais clichês e enquadramentos, em vez de optar pela radical e simplificadora rejeição aos lugares-comuns. Além de não serem sublimadas ou negadas, as informações reais que alimentam tais estereótipos sobre JCMN serão repisadas e sulcadas, reiterada e pacientemente prospectadas; não para revelar águas desconhecidas (Marques não costuma alicerçar suas obras na busca por grandes revelações), mas para que o leitor seja praticamente obrigado a notar e apreender as camadas do terreno, nuances nas paredes que levam até as fontes antes tão subaproveitadas.
Aquele primeiro encontro com Drummond, por exemplo, não oferece apenas semelhanças que nos remetem à gaveta dos escritores geniais, embora figuras comezinhas, de modos reservados. O episódio serve para expor diferenças também significativas. Por óbvio, não se trata de apelar para um contraste fácil — como o de Vinicius —, onde as particularidades cabralinas se perderiam nas despropositadas medidas da régua. Ainda que retratado ao lado do mineiríssimo Carlos, o jovem João destoava:
Parecia mesmo um burocrata em início de carreira, ou um estudante vindo do Nordeste em busca de favores do ministro. Seria também difícil adivinhar que o modo ao mesmo tempo polido e seco passava seus dias sob o efeito permanente de aspirinas. Uma observação mais atenta, porém, não deixaria escapar os sinais que seu corpo manifestava de seu temperamento nervoso e inquieto: a expressão facial contraída; a mania de apertar os lábios; o hábito de tirar os óculos e apoiar a testa na mão; a necessidade de confirmar — “compreende?” —, a cada duas ou três frases, se o interlocutor ouvia e acompanhava suas falas; e, sobretudo, a neurose do tempo, a obsessão com o relógio.
Ao fim do capítulo inaugural, encontramos a resposta epistolar que JCMN enviou nove meses depois de Drummond lhe deixar uma carta no hotel, ainda no Rio, informando que não conseguira encontrar minutos “realmente seus” para se despedir pessoalmente, antes de o pernambucano voltar para casa. Mais: o insigne escritor não só se absteve de maiores comentários sobre os poemas cabralinos que lhe foram entregues, como deixou em lugar, junto com a cartinha de despedida, um exemplar do seu Alguma poesia. Eis a tardia réplica de João Cabral:
Meu caro Carlos Drummond de Andrade,
Eu estava para lhe escrever desde a minha volta ao Recife. Não o havia feito até agora, porém, não só com o receio de provocar uma correspondência que bem sei inoportuna, como também por adivinhar que não me poderia ver livre, nem mesmo numa carta, de certa dificuldade de comunicação que me é particularmente penosa, principalmente tratando-se de uma das pessoas com quem mais no mundo eu gostaria de vê-la desaparecer.
Ivan Marques destaca uma das características comuns aos dois escritores, traço que não pode ser subestimado por quem se debruce sobre as tensões da célebre amizade: a dificuldade de comunicação.
O que o biógrafo também faz — sem dissimulações, mas cônscio de que o leitor provavelmente está mais atento ao citado embaraço do poeta — é mover outra peça conhecida, ainda que não suficientemente explorada: a instabilidade, a fragilidade emocional de João Cabral de Melo Neto.
Sem pesar a mão, sem se apoiar no reforço de tintas ou em liberdades poéticas, Marques permite que a duração da obra e a nossa capacidade de leitura/convivência levem aos cômodos que sempre estiveram disponíveis, nada obstante os paradigmas da formalidade e da racionalidade (os quais nos habituamos a ver transportados da obra para o caráter do seu criador).
Bastidores
Em 2018, a Todavia anunciou que contratara o professor e escritor Ivan Marques para realizar a biografia de João Cabral, cujo centenário aconteceria dois anos depois. A opção por um jornalista e pesquisador acadêmico se coadunava com a intenção divulgada pela editora: veicular um produto que misturasse o viés da reportagem com o do ensaio crítico. Entre outras coisas, a escolha representava imediata garantia de que teríamos resultado bastante diferente d’O homem sem alma, publicado por José Castello em 1996 — texto delicado, personalíssimo, onde o pronunciado olhar de seu autor já enfatizara o tão incompreendido perfil emocional do poeta.
Em trabalhos anteriores, como Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (2011) e Modernismo em revista: Estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (2013), Ivan Marques demonstrara seu estilo objetivo, a valorização das informações documentadas, dos materiais veiculados na mídia, além de exibir grande poder de síntese mesmo ao lidar com objetos cujas fontes de pesquisa pareciam inesgotáveis — atributo este que agora lhe seria essencial.
Ao tratar publicamente da biografia, Marques sempre deixou claro que, embora atento às novidades que surgissem das investigações e novas entrevistas, sua maior tarefa seria mesmo lidar com o disperso, imenso e rico material existente sobre a vida do pernambucano, além da gigantesca fortuna crítica dedicada aos seus poemas. Tanto assim que, a despeito do texto bastante direto e enxuto, ele entregou livro com mais de quinhentas páginas, nas quais os leitores certamente não se sentirão enrolados. Muito pelo contrário: o que talvez incomode é justamente a descrição muito sucinta de fatos que, sob as penas de outros autores, renderiam parágrafos e mais parágrafos de correlações, especulações, divagações, etc. Conquanto análise mais rigorosa constate que alguns temas e episódios receberam sim tratamento diferenciado (vide os angustiantes anos que antecederam a morte de João Cabral), estilo e ritmo realmente deixam a sensação de que muitos acontecimentos foram tratados de modo demasiado seco, ágil e uniforme.
Mas é justamente o perfil do biógrafo que termina por dar maior peso a alguns paradoxos da figura cabralina, tais quais: I) apesar dos modos discretos e austeros, do temperamento avesso a aventuras e extravagâncias, JCMN teve uma vida repleta de fatos curiosos, acontecimentos memoráveis e bastante relevantes para história cultural do país; II) ainda que o pernambucano insistisse em sua inaptidão para vida pública, em sua dificuldade para falar de si e de sua obra, raros são os autores que concederam tantas entrevistas ao longo da vida; III) a complexidade e o caráter antilírico de sua poesia (além das caneladas no trato com profissionais da mídia, críticos e outros escritores) não impediram que ela ocupasse desde sempre um lugar indisfarçavelmente privilegiado, sempre entre as mais estudadas, comentadas e reeditadas; IV) criou-se a inabalável a imagem de homem rígido, formal e sem emoções (a ponto de, até hoje, o irônico título do livro de José Castello ser equivocadamente parafraseado); e assim continuou mesmo quando notícias e depoimentos trouxeram a sua tendência para frustração, para guardar mágoas e rancores; a facilidade com que recaía em contradições, inseguranças, ansiedades quase incapacitantes, o inconsolável receio de morrer a qualquer momento.
Todos esses contrastes findam comoventemente nítidos em João Cabral de Melo Neto: uma biografia exatamente por Ivan Marques não ter se entregue ao apelo fácil, a afetações retóricas que nos arrastassem às sendas cabralinas menos visitadas. Assim, livres de proposta autoral mais impositiva, podemos lentamente nos aproximar, captar, problematizar e até descartar lugares-comuns; sentir identidade ou tomar abuso do biografado e de suas contradições, temores, fraquezas; enfim, chegar à intimidade (tantas vezes dita inalcançável) com o poeta. A tal ponto de começarmos a antecipar suas provocações, queixas, elogios, piadas; de adivinharmos o que ele fará depois de abrir a porta ou fechar cortinas, após tomar doses de uísque ou devorar os remédios para a lendária dor de cabeça; de imaginarmos quanto alvoroço existe em seu silêncio, quantos infernos resistem sob as tiradas materialistas, quando a discreta morte vai real e definitivamente lhe substituir os infindáveis presságios.
Ao entrevistar ou ouvir palestras de Ivan Marques, a maioria dos jornalistas quer saber do menino de engenho que lia escondido folhetos de cordel para os boias-frias; do rapaz que se mostrava um promissor jogador de futebol; do poeta que não tardou a provocar desconfortos, admirações e um sem-número de terríveis imitadores; do diplomata que ajudou escritores perseguidos pelo franquismo na Espanha, bem como enfrentar as perseguições políticas em seu próprio país; do homem que odiava música, mas escreveu Morte e vida severina; do membro da Academia Brasileira de Letras que, na velhice, perdeu grande parte do único sentido que ele realmente considerava importante: a visão.
Mas quem, de fato, calcorrear João Cabral de Melo Neto: uma biografia poderá ser conquistado sobretudo por coisinhas nada extraordinárias, por cenas cotidianas, precárias, familiares; um outro museu, de tudo e de quase nada, de um João íntimo e desconhecido… O que — para além de quaisquer outros defeitos que pudéssemos apontar na biografia — é realização mais que louvável.