Em seu livro Écrire, pourquoi?, a escritora e crítica de arte Véronique Pittolo discorre sobre o que ela entende ser as duas formas de escrever: “Ou se escreve sobre si a partir de uma experiência pessoal, autobiográfica, ou se escolhe um tema exterior para lhe fazer submeter todas as espécies de mutações e de metamorfoses”.
O casal Simone Beauvoir/Sartre extrapolou as fronteiras de sua produção intelectual, influenciou gerações e para muitos se transformou em exemplo de liberdade e de emancipação feminina. A relação ideal seria aquela de Simone/Sartre. Como a arte de imitar contamina o ser humano de todos os cantos do universo, bastava ler uma linha acerca da suposta liberdade do casal famoso para tentar reproduzir. Esqueciam de analisar mais profundamente, esqueciam que liberdade e igualdade precisam andar de mãos dadas, do contrário será pura encenação. Os bastidores jamais serão insignificantes.
Em Uma relação perigosa, biografia do casal, a pesquisadora Carole Seymour-Jones apresenta a importância daquilo que não veio a público, a economia interna de Sartre/Simone. Carole mostra uma Simone manipuladora, que forjou uma imagem ideal, a imagem que gostaria que o mundo tivesse (e talvez ela mesma) da relação do casal, do casal com a política, e até mesmo do sexo em geral e entre eles.
Segundo a autora, Simone sentia prazer em mentir. Sartre parecia não se incomodar com isso. Ainda segundo Carlone, Simone mentia, enganava as amantes que levava para Sartre. Não satisfeita, enganava os biógrafos que a procuravam.
Beauvoir havia pregado uma peça em seus biógrafos, conquistando-os com sua aparente confiança e tapeando-os. Superados em esperteza, eles subestimaram sua obstinação e habilidade.
Carole revela seu espanto, ao fazer a pesquisa, com a distância existente entre aquilo que o senso comum considerava o exemplo de relação amorosa/intelectual e a realidade do casal.
Cabe lembrar que ao se tratar de biografia recomenda-se o uso da desconfiança, duvidar é fundamental. Ao fazer a leitura deste texto, recomendo sucessivos retornos à frase de Véronique Pittolo.
Simone não mostrava o casal por inteiro. Carole mostra?
Rousseau aparentemente se mostra por inteiro em As confissões. Narra suas aventuras amorosas, revela suas práticas sexuais, fala de sua relação com Teresa — uma mulher simples que foi sua companheira durante décadas e com quem se casou no fim da vida —, dos cinco filhos que teve com ela, todos entregues à Casa dos Expostos, e das razões que o levaram a agir dessa maneira. Revela peculiaridades sobre seus amigos e inimigos, de seu ódio a Voltaire, das jovens que sem razão difamou e de outros deslizes que cometeu, dos ofícios exercidos, de literatura, filosofia, ciências, poder e arte, e de muitas outras questões, sempre passando a ideia de que está colocando forte dose de emoção em tudo o que está confessando.
Apesar de todos esses elementos, convém lembrar que o próprio filósofo afirma que escreveu Confissões de memória e, quando a memória falhou, preencheu essas lacunas com detalhes por ele imaginados.
Imaginação
Simone imaginava uma relação harmoniosa, sem lugar para sofrimentos, os seus principalmente. No entanto, Carole afirma que a história não era bem assim, conforme contada pela autora de O segundo sexo.
Tanto o revelado por Simone, anos a fio, quanto a versão apresentada por Carole merecem reservas. Enquanto a primeira versão parece buscar o paraíso das relações imunes às questiúnculas mundanas, a segunda não disfarça sua intenção de mostrar que o ídolo era feito todo da mais fétida das lamas. Um exemplo?
Carole reuniu provas acerca da não atuação dos intelectuais na resistência à ocupação de Paris pelas forças de Hitler. Há quem afirme que Sartre e Simone enriqueceram no período da ocupação à custa dos judeus. A autora conversou com Bianca Bienenfeld Lamblin, antiga amiga do casal, que não esconde a mágoa por ter sido abandonada logo que a guerra teve início.
Por outro lado, acentuando a necessidade de desconfiar das biografias, repare lá na página 229, detalhista leitor:
No trem para Nancy, Sartre lia O processo, de Kafka, e vivia a Guerra de Mentira diante dele como algo kafkiano: um momento em que a sensação que os homens tinham era de estar realizando manobras ou passando férias no campo. Para o próprio Sartre, servir na seção meteorológica de um quartel-general de artilharia no Setor 108, logo atrás do front na Alsácia, foi o equivalente ao retiro de um escritor. Ele nunca se mostrou tão produtivo quanto no período em que serviu o exército, que lhe deu o tempo ocioso necessário para escrever um romance em quatro meses, 15 cadernos de anotações de seu Diário de Guerra, que serviram de base para O ser e o nada, e centenas de cartas, um milhão e meio de palavras até seu cativeiro chegar ao fim, em março de 1941.
Caro leitor, de onde a autora tirou que Sartre lia O processo? Convenhamos isso é ficção. Logo ela diz que Sartre serviu na seção meteorológica e conclui falando em cativeiro. Serviu ou foi preso?
No trecho destacado você pode ler “Lá fora, na escada de pedra, uma criança chorava”.
Mas quem informou que naquele exato momento uma criança chorava? Isso é pura imaginação, criatividade, ficção? Biografia ou romance? Decida, inocente leitor.
Ambas versões frequentam o espaço localizado entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não estão livres do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura memorialista é como uma peça de teatro onde o narrador, ator protagonista, representa mais de um papel. Eis que uma questão se impõe: a escrita memorialista tem o sentido de preservar a fugacidade de um evento? Seria esta sua função precípua, ou nada mais que mera catarse do autor?
A memória, as escritas de tom memorialístico equilibram-se no espaço exíguo que separa a mentira e a confissão. Restará sempre a pergunta: até que ponto a lembrança pode ser uma ilusão? O exemplo mais evidente dentro da literatura brasileira é a obra memorialística de Pedro Nava. Ao longo dessa obra, a família é presença constante no objetivo de construir uma época, e Nava nem sempre é condescendente com seus familiares. Está ali sua matéria-prima: entre a escrita e a preservação da intimidade dos parentes, Nava fez a escolha: “Porque para mim eles perdem o caráter de criaturas humanas no momento em que começo a escrevê-los. Nessa hora eles viram personagens e criação minha”.
Pedro Nava combina memória e imaginação e, ao afirmar que transforma seus parentes em personagens, a memória se transforma em ficção. Segundo Antonio Candido, a personagem é “um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial”.
Nava, em seus livros, faz de pessoas personagens, inventa realidades, as memórias, de modo geral, fazem largo uso da fabulação. Vale alertar para o fato de que, mesmo nas autobiografias, é bastante possível se encontrar fabulação. Apesar do decantado compromisso com a verdade, a autobiografia não deixa de ser uma “forma de escrita”, e toda “forma de escrita” implica manipulação da realidade, e não a realidade propriamente dita.
No que concerne às biografias o cenário não se faz tão diferente. Simone criou seus personagens e falava/escrevia sobre eles. Carole se aproveitou de personagens prontos, exageradamente complexos, e também fez o seu teatro. Levá-los a sério ou não é problema seu, curioso leitor. Nunca esquecer de Paul Valéry: “Em literatura o verdadeiro não é concebível e qualquer tipo de confidência visa à glória, ao escândalo, à desculpa, à propaganda”.
Desconfie, leitor, desconfie sempre das biografias. François Dosse, afirma em O desafio biográfico:
Para o historiador, a redação de uma biografia presta-se a toda sorte de desvios. Convém manter certa distância do sujeito que em geral lhe é simpático e que, por isso mesmo, o arrasta a uma adesão não apenas intelectual, mas não raro afetiva e passional. Existe, pois, uma “ilusão biográfica” de que é bom desconfiar.
Carole Seymour-Jones transformou Uma relação perigosa numa densa ilusão biográfica. Este aprendiz encarou a obra de Carole como um romance. Um romance ruim… bem fraco… fraquinho!