Iluminar um personagem

Há autores que interferem no mundo do narrador, causando equívocos enormes no texto
Antônio Torres, autor de “Essa terra”
01/07/2012

Na ficção tradicional, as ações iluminam os personagens, sobretudo o protagonista. Há criadores, porém, que interferem no mundo do narrador, causando equívocos enormes no texto. O autor deve conduzir o texto sempre junto ao narrador, e não interferir a todo momento, comentando, alterando a rota do texto, confundindo o leitor. Até que se torna muito chato. Não imagina sequer que o leitor percebe.

Jorge Amado comete a asneira de responder à crítica literária no princípio de A morte e a morte de Quincas Berro D’Água. Algo ingênuo e desnecessário, sobretudo para um escritor do nível de Jorge Amado, autor de alguns dos mais importantes romances da literatura brasileira. Mas isso não significa perda de qualidade na obra de Amado, embora ele nunca tenha dado importância a questões técnicas. Quem, no entanto, procura qualidades inéditas para seu trabalho deve observar a iluminação como algo essencial na construção de um romance, novela ou conto. Tomaremos como exemplo duas grandes obras: Essa terra, de Antônio Torres, e A história de Mayta, de Mario Vargas Llosa.

Em Essa terra, Antônio Torres coloca o personagem Totoin no centro dos acontecimentos. Mas não há um narrador fixo, cada capítulo é entregue a um personagem — o pai, a mãe, o irmão mais novo — e cada um lança luzes sobre o protagonista, de forma que a narrativa vai se iluminando pouco a pouco. E aí se realiza a grandeza do romance. Zonas esquecidas ou escondidas do personagem vão sendo iluminadas, mostrando que um narrador não sabe de tudo e que precisa de outros personagens para esclarecer a trama. Um ótimo livro para mostrar e estudar a história apresentada por vários narradores, sem que um, muitas vezes, conheça os detalhes do outro.

Isso faz com que a narrativa se enriqueça e aumente a curiosidade do leitor. As modificações no caráter de Mayta são radicais e mostram um personagem profundamente contraditório ou mesmo confuso aos olhos do leitor. Tudo faz parte, porém, da técnica sofisticada do Prêmio Nobel peruano, um dos romancistas mais notáveis do nosso tempo.

Creio que a leitura atenta destes dois livros nos levará a entender com absoluta clareza o que vem a ser a “iluminação do personagem” ou a técnica dos múltiplos narradores, e, sobretudo, a aprender como usá-la. Mesmo assim, podemos observar que na narrativa tradicional o conflito do protagonista é, na maioria das vezes, questionado, apresentado ou refletido nos diálogos associados à ação.

Outro exemplo de múltiplos narradores — dois, pelo menos —, mas com funções diferentes, é Dom Casmurro, de Machado de Assis. O escritor mineiro Fernando Sabino foi quem descobriu, refletiu e analisou a existência desses dois narradores em livro em que reescreve o clássico fluminense, cujo título é Amor de Capitu. Bentinho conta a história e Dom Casmurro faz as digressões e crônicas do Rio de Janeiro.

Podemos lembrar, ainda, do romance Agá, do pernambucano Hermilo Borba Filho, em que o protagonista assume personalidades diferentes, sempre na primeira pessoa. Começa com “Eu, ditador” e prossegue com outros “eus”, a exemplo de: Eu, escritor; Eu, religioso; Eu, guerrilheiro. E oferece todo um campo imenso de personagens que vão se desdobrando num grande ritmo narrativo, sem necessidade do enredo convencional, mas com muitos movimentos internos. Algo que impressiona muito o leitor. Cada capítulo corresponde a um personagem diferente, como se fosse um “eu” multiplicado.

Pelo que se percebe, não são poucos os exemplos de narradores múltiplos. Poderíamos até citar o caso de Vidas secas que, embora não seja caso de narradores múltiplos em primeira ou em terceira pessoa, ganha em vigor narrativo porque expõe o universo do texto através de diversos focos narrativos: Fabiano, o menino mais novo, o menino mais velho, e daí por diante. É uma questão de leitura e de análise. Não é por acaso que o livro de Graciliano Ramos é chamado de romance desmontável.

NOTA
O texto Iluminar o personagem foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, editado em Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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