Desde 1979, data que marcava os vinte anos de sua estreia oficial com Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan vem organizando antologias de seus contos. Ainda assim, a publicação desta Antologia pessoal constitui uma novidade.
Contribui para isso a circunstância de sair no momento em que, talvez (no caso de Trevisan, quem poderia ter certeza?) o autor já tenha dado sua obra como terminada. Ainda que não seja assim, sua última coletânea, Beijo na nuca, apareceu há nove anos. É o maior hiato entre dois livros na carreira do escritor que, vale lembrar, completou 98 anos em junho. O leitor não tem como deixar de pensar que se trata de um balanço “definitivo” de sua produção.
Essa impressão fica mais forte quando se vê que esta é de longe a mais alentada de suas antologias. São 94 contos, enquanto as anteriores ficavam no máximo pela casa dos trinta. E ainda mais porque pela primeira vez os contos aparecem ao lado de um balanço crítico, o excelente prefácio Antologia como método, de Augusto Massi, que mapeia a obra, dentro e fora da antologia, encaminha uma leitura de conjunto e ainda sugere outros caminhos de apreciação e de análise.
A ideia de que se tem nas mãos um balanço “definitivo” é atraente para todo tipo de leitor. Aquele que começa por aqui sua convivência com essa literatura pode se sentir confiante de que terá a melhor introdução possível. Aquele que já vem convivendo com ela pode fazer seu próprio balanço, contrapondo suas possíveis escolhas com as do autor. Se for mais curioso, pode até mesmo comparar a escolha atual com as que o autor publicou há quarenta, vinte ou dez anos e ficar horas inventando explicações para suas diferenças. Basta lembrar, neste sentido, o fato notado por Massi, de que na mais recente e ampla 2antologia anterior, saída em 2009, não há nenhum conto nesta nova.
A repetição
Balanços, como antologias e traduções, são sempre complicados, sujeitos à velha pergunta “por que não?”. No caso dos contos de Dalton Trevisan, essa complicação aumenta. No conto Quem tem medo de vampiro?, que aliás ficou fora da Antologia pessoal, o narrador é um leitor que, ressentido, vocaliza as maiores críticas que o lugar-comum faz ao escritor. Vamos pensar em duas delas, que dão a chance de pensar em questões tanto de forma quanto de fundo. Uma é a da repetição: “Quem leu um conto já viu todos. Se viu o primeiro já pode antecipar o último — antes que o autor”.
A repetição é marca registrada desta antologia. Mais do que a catadupa de personagens que são João e Maria, mas também podem ser André ou Tito, a leitura continuada de um volume de mais de quatrocentas páginas dá oportunidade tanto para o novo como para o velho leitor perceberem que o projeto estético do autor se assenta sobre a repetição não apenas de nomes, mas de temas, de imagens, de expressões e de palavras. E também de elipses, de omissões: do não dito. Haverá quem se aborreça com isso, mas não pode haver quem deixe de perceber que a repetição constrói uma obra fragmentada em centenas de contos, mas que não pode ser vista senão como um corpo orgânico.
A percepção de organicidade se reforça pelo estilo mais que enxuto, descarnado, em que os contos são escritos. É bem conhecido o fato de que Dalton Trevisan passa a vida não só escrevendo contos, mas também revendo os já escritos. De maneira que o conto de abertura da Antologia pessoal, O espião, começava assim em 1964:
Só, condenado a estar consigo mesmo, fora do mundo, o espião espia. Eis um casarão cinzento, com janelas quadradas, defendido pelo muro eriçado de cacos de vidro. Embora não o deseje, posto se trate de um espião, é forçado a conhecer os eventos principais do edifício, cujas letras na fachada — porventura o nome de um santo — não consegue distinguir, cada vez mais míope.
Agora ele aparece assim:
Só, condenado a si mesmo, fora do mundo, o espião espia. Eis um casarão cinzento, janelas quadradas, muro faiscante de cacos de vidro. Posto não o deseje, conhece os eventos principais do edifício, cujas letras na fachada — porventura o nome de um santo — não consegue distinguir, cada vez mais míope.
Como se vê, o processo mais importante dessa reescrita é o corte, por isso mesmo é bom prestar atenção ao que se corta. Há um enxugamento que pode ser lido como fundamentalmente estilístico, como a supressão daquele “com” antes de janelas quadradas ou a conversão mais complexa que transforma “defendido pelo muro eriçado de cacos de vidro” em uma frase nominal, “muro faiscante de cacos de vidro”, criando uma imagem que evita repetir o que foi dito, pois, é evidente, os cacos de vidro lá estão para defender o edifício.
Mas há outras que têm repercussões mais profundas. Todas as explicações, tudo o que pode dar qualquer indício de um julgamento do narrador, é eliminado. Para que serve, por exemplo, dizer que o espião, solitário, está “condenado a estar consigo mesmo” e espia “embora não o deseje”? Serve apenas para colocá-lo numa posição diferente das criaturas espiadas, como se seu mau hábito de espiar fosse mais justificável, por sua solidão e por corresponder a um impulso que independe de sua vontade, como se fosse um pobre homem e pudesse ele próprio julgar as maldades do pai que deixa a filha num orfanato, das freiras com seu sistema perverso de tratar as meninas, das meninas que se permitem ser impiedosas umas com as outras. Eliminar essas marcas põe diante de quem lê um narrador sem desculpas, como o pai, como a freira, como as meninas cruéis, como os Joões que abusam das filhas, surram as mulheres, não param de beber, ou de perguntar “Tem um craquinho aí?” logo depois de passarem por um tremendo perrengue e pensarem: “Agora vida nova”. O texto se complexifica, e fica por conta do leitor lidar com a árdua tarefa de julgar, se acha que é o caso, quem quer que seja. Aliás, essa prosa que conta sugerindo exige que se preencha o não-dito até mesmo para compreender o enredo — tortura e prazer de quem lê.
A segunda crítica
Neste ponto já fica mais fácil discutir a segunda crítica do leitor contrariado de Quem tem medo de vampiro?, a de que a obra desse vampiro é conformista, de pouco alcance e canalha:
Cafetão de escravas brancas da louca fantasia, explora a confiança da nossa gente humilde. Ó maldito galã de bigodinho e canino de ouro, por que não desafia os poderosos do dia: o banqueiro, o bispo, o senador, o general?.
Há aí a menção a um método de composição que parte do que é miúdo: o inconfessável convertido em confidência. Aflições cotidianas, atos pouco recomendáveis segredados em confiança, portanto, seriam o material que põe de pé essa obra. Tirando o dado biográfico da confissão literalmente feita conto — sabe-se lá de onde um escritor tira suas histórias —, é para isso mesmo que os contos apontam. É um mundo sem grandeza o que eles desenham. O lirismo, que é frequente mas sempre surpreende, emana dessa mesquinharia que domina tudo.
Com o facão, dói, por exemplo, é protagonizado por um João que bebe e “agarra e beija [as filhas] mais velhas”, considerando-se “o galã do barraco”. A mulher há quinze anos sofre “com seu querido carrasco”. A frase-título é a que fecha o conto, um pedido feito pela filha pequena que apanha, logo depois de dizer, como se fosse preciso explicar (e não é?): “Sai sangue, pai. Não com o facão, paizinho”. O carrasco é “querido”, o pai violento é “paizinho”. Submissão, afeto, violência, dever, tudo se mistura para gerar no leitor uma sensação ruim que também é misturada de pena, impotência, comoção. E ódio. E nesse ódio, por mais justificado que possa ser, eis que o leitor sem autocomplacência se vê como uma espécie de João.
É verdade que os personagens dos contos são criaturas miúdas, nada de bispos ou banqueiros, e sim uma galeria de órfãos, donas de casa pobres, operários, lavradores, gente que “puxa carrinho” à cata de lixo reciclável pela cidade, desocupados, marginais, crianças sofridas, velhos abandonados que não ficaram mais sábios com a idade. Mas também é significativo que o leitor maldoso de Quem tem medo do vampiro? caracterize o autor exatamente como vários de seus personagens. Quer ofendê-lo e o elogia porque confirma o terrível nivelamento que os contos produzem. O autor não é igual aos Joões de bigodinho e canino de ouro porque é reles, insignificante ou simplesmente mau como eles. É igual porque as fraquezas são compartilhadas por todos, é igual porque padece da doença do individualismo radical que tem mais facilidade para se distanciar do João ou da Maria do que para admitir que não é melhor nem que João nem que Maria. Assim como nós leitores que, senador, general ou qualquer um que esteja aparentemente distante de João e de Maria, confortavelmente instalados em nossa poltrona, nos vejamos tão diferentes de todos eles.
Diferente
E, por falar em diferença, o conto que fecha a Antologia pessoal é bem diferente dos aqui mencionados. Não fala de nenhum João, mas de um Josué dos Santos, ciclista que morre atropelado por um caminhão no início de uma tarde qualquer na Rua Barão do Serro Azul, em pleno Centro de Curitiba. É um acidente. Ninguém tem culpa, apenas a pressa de nosso tempo. A uma certa altura, o narrador, que vem falando com piedade, mas com distanciamento, de um “ele”, tira do nada um “nós”: “Ele morreu como um bom ciclista: quase de imediato. Se um de nós cai, outro já decola à uma da tarde, o peito impávido contra a baioneta calada dos para-choques”. Eis-nos, narrador e leitor, igualados a esse Josué-ninguém pelo mais imediato dos laços: “Em cada esquina desta cidade a morte pede carona”. Outro lirismo, mesma convergência.
Iguais e diferentes são todos os contos. A própria operação contínua de reescrita, numa reunião de textos publicados inicialmente num intervalo de nada menos que cinquenta e cinco anos, faz com que a Antologia pessoal exiba todo o tempo uma prosa madura. No limite, a mesma prosa. Dessa maneira, converte-se em síntese da organicidade da obra de Dalton Trevisan, feita de uma repetição contínua em textos que se multiplicam e que vão se transformando um pouco a cada edição, sempre iguais porque sempre diferentes, ou cada vez mais diferentes apenas para ficarem mais iguais entre si. Nesse sentido, até pode se dizer que é mesmo o balanço definitivo de sua obra. Mas as antologias anteriores, tão diferentes, com tão poucos contos em comum, também não eram? Talvez o autor esteja sugerindo mesmo é que a gente leia toda a sua obra.