Ideologia e desonestidade

Carta aos melhores críticos vivos em resposta ao senhor Rodrigo “Repetidor” Gurgel
Jorge Amado, autor de ‘Capitães da areia”
30/09/2018

Caras críticas e críticos vivos, em especial os de minha geração, escrevo esta resposta, em forma de carta, em resposta ao doutrinador liberal e simplificador formal, Rodrigo Gurgel, diante da crítica rasteira que fez do Capitães da areia de Jorge Amado, na edição 219 deste Rascunho, sob o título de Jorge “Repetidor” Amado.

É graças à ausência (não total, é verdade) da crítica nos espaços de discussão pública que esse tipo de discussão rasteira se reproduz sem resistência. Não que senhores deste tipo devessem ser banidos dos jornais, não devem: mas este senhor tem espalhado preconceitos liberais desde 2010 e respostas mais significativas que possam se impor no mesmo meio ambiente são bastante escassas, fazendo com que esse tipo de texto passe por discussão séria junto a um público leitor que merece coisa melhor.

Ou, o que seria dizer de outra forma, a crítica literária competente precisa retornar aos jornais. Enquanto a nossa melhor crítica se mantém presa a teses de doutorado, livros de baixa circulação e posfácios, doutrinadores liberais ocupam esses espaços, que vamos abandonando. Algumas exceções se fazem sentir, aos poucos retornamos: mas é preciso fazer esse movimento com mais força.

A posição do senhor Gurgel é a seguinte: Jorge Amado é um doutrinador comunista que romantiza os capitães da areia (que Gurgel insiste em chamar de “delinquentes” e “criminosos”, ao invés de crianças, adolescentes ou mesmo pessoas — fazendo esse tipo de crítica que escolhe adjetivos porque não tem nada de substantivo para dizer). O preço de Jorge Amado, para o senhor Gurgel, seria a esquematização psicológica (romantização dos capitães da areia e demonização da burguesia), criando esquemas de previsibilidade narrativa. Claro, porque basicamente, para Gurgel, um romance é enredo e psicologia, já que a sua própria ideologia é derivada da pequena burguesia, ligada à defesa da propriedade privada e da complexidade psicológica realista.

Mesmo que Jorge Amado de fato romantize os capitães da areia, a cegueira de Gurgel é gritante: não percebe a romantização que toda complexidade psicológica significa em qualquer romance burguês, ou mesmo nos da pequena aristocracia decadente alemã a que ele alude no final do artigo. O que não significa, é claro, uma decadência, nem lá, nem em Jorge Amado. A questão é que a defesa do realismo psicológico como arquétipo ideal de construção prosaica faz com que Gurgel não perceba elementos básicos de complexidade narrativa de Capitães da areia, como, por exemplo, apenas para citar o mais óbvio, a transposição da visão pré-adolescente (ligada, portanto, à transformação do desejo amorfo para objetos de desejo micrológicos, como mechas de cabelo ou pedaços de perna) para a própria descrição psicológica de todos os personagens do romance. O romance é narrado do ponto de vista da adolescência, e é um romance sobre uma geração. O senhor Gurgel tem o espelho partido, pois é ele próprio um “repetidor”, sua crítica é mera reiteração do título de sua resenha, e a resenha é uma resenha de sua própria psicologia limitada.

Tudo isso em nome, aliás, de uma concepção rasteira não apenas de romance e de construção de personagem, como também da própria psicologia e da sociologia. Lucas van Hombeeck fez o comentário público mais significativo, a meu ver, a esse propósito, e cito aqui integralmente: “[O senhor Gurgel] escreve coisas como ‘a tais fórmulas fáceis, o narrador acrescenta o mais batido dos esquemas sociológicos, segundo o qual a pobreza justifica o crime’ e ‘a sociologia rasteira polui, é claro, a psicologia dos personagens’, como se 1) a sociologia se prestasse ao papel de justificação de condutas e 2) a sociologia se opusesse à psicologia no conhecimento dos agentes. E além de (tentar) reduzir o Jorge Amado a um escritor de ‘romancinho’, diz que a forma é ‘pedra de moer consciências, reforçando, página a página, associações mentais enganosas’, ou seja, ainda trata o leitor como idiota. Essa figura passiva que é ‘catequizada’ pela repetição do esquema, sem agência ou capacidade crítica nenhuma. Logo ele [o senhor Gurgel] que se preocupou tanto com profundidade psicológica. Só falta dizer que livros são perigosos”.

E é aí que entra a doutrinação a que se presta o senhor Gurgel: seu objetivo, claramente, é traçar uma linha homogênea entre Jorge Amado e PT (nessa indistinção da “doutrinação comunista” de projetos políticos tão distintos como o do Partido Comunista e o do Partido dos Trabalhadores, o que seria análogo a um comentário injusto do tipo “o liberalismo do senhor Gurgel é idêntico ao de Adam Smith”, o que seria, é claro, uma ofensa terrível a Adam Smith), concluindo: “Hugo von Hofmannsthal afirmou, em 1927, numa conferência pronunciada na Universidade de Munique, que ‘nada é realidade na vida política de uma nação que já não esteja presente como espírito em sua literatura’. Se ele está certo, Capitães da areia contribuiu para o delírio e o caos — econômico, político e moral — que, graças à esquerda, vivemos hoje. Não é à toa que, no final do romance, Pedro Bala, exaltado pelas crianças ‘de punhos levantados’, escuta o samba Companheiros, vamos pra luta. E, ainda pior, não é por acaso que, década após década, este romancinho de doutrinação política tem sido leitura obrigatória nas escolas e nos principais vestibulares do país”.

É por isso, amigas e amigos críticos, que faço essa convocação, para que retornemos aos espaços públicos, não para enxotar essa gente, mas para escancarar o ridículo de seus processos mentais.

Este senhor Gurgel e outros estão fazendo a sua doutrinação. Expor a sua fraqueza crítica, que herdaram de sua fraqueza ideológica e da defesa desesperada de seus privilégios, é urgente.

Seria também um favor ao senhor Gurgel, uma espécie de óculos que poderíamos emprestar para que este senhor reveja com atenção os seus critérios, bastante exteriores à obra, e que, portanto, falam mais dele mesmo e de suas impressões do que do romance de Jorge Amado.

Agradeço aos que já começaram a retornar aos espaços públicos, e aos que desejam fazê-lo. Tudo isso influi no nosso futuro. Vamos juntos.

Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

Rascunho