A definição de “literatura militante” elaborada por Lima Barreto, à sombra de Jean-Marie Guyau — pensador que foi lido atentamente por Kropotkin e Nietzsche —, impõe à obra literária “o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens”. Em nosso país, onde, segundo Barreto, não há passado, mas só futuro, “nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos”, dizia o romancista. E completava, depois de excluir do seu sonho os “cavalheiros de fidalguia suspeita” e as “damas de uma aristocracia de armazém por atacado”: “[…] Devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós”.
Esse anseio de solidariedade utópica — e, portanto, excludente — surgiria em outras crônicas do autor, incluindo o Manifesto maximalista, de apoio à Revolução Russa — encerrado com o grito “Ave Rússia!” —, sempre voltando ao desejo de tornar “os homens mais capazes para a conquista do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.
Para Lima Barreto, o dever dos “escritores sinceros e honestos” é o de
tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si.
Tais esboços de espírito revolucionário, esses lampejos de fraternidade universal, não se concretizaram, no entanto, na ficção de Lima Barreto, marcada, desde Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), pelo sentimento de derrota:
Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de decisão e mais amolecido agora com o álcool e os prazeres… Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro… Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império.
Não é outra a conclusão que explode no final de Clara dos Anjos (publicado postumamente, em 1948), quando a jovem sentencia à mãe: “— Nós não somos nada nesta vida”; ou nas reflexões sobre o conceito de “pátria” que o narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) coloca na mente do major, pouco antes de sua morte:
Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.
Não importa se essas vítimas da ingenuidade, do ideal, de uma visão fatalista da existência e, principalmente, do auto-engano, refletem as características pessoais do autor, ainda que seja possível estabelecermos inúmeros paralelos. O que ressalta é o abismo a separar a vontade da ação, o projeto de “literatura militante” das obras em que amor, compreensão entre os homens e felicidade nunca se concretizam. O que sobressai é o iniludível vitimismo, no qual as personagens às vezes até conseguem captar a medida de responsabilidade que tiveram em seus destinos, mas sem jamais lograr verdadeiras mudanças.
Homem estéril
O problema se repete em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). Logo no Capítulo I, o narrador, o jovem Augusto Machado, anuncia que contará as “cousas íntimas” da “bela obscuridade” de seu amigo, Gonzaga de Sá, funcionário da inútil Secretaria dos Cultos; e o primeiro documento que nos oferece é o breve texto descoberto entre papéis e livros do burocrata: a história de um inventor derrotado, metáfora, logo percebemos, da existência de Gonzaga.
O próprio narrador, aliás, já anunciara, nas justificativas apresentadas antes de iniciar a biografia, que as possíveis críticas lhe darão “alento para viver, cousa que me vai faltando dentro de mim mesmo”. E as conclusões que Machado extrai do relato sobre o inventor antecipam muito de sua cosmovisão: “[…] o Acaso, mais que qualquer outro Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade”.
O livro nasce, assim, do encontro desses dois homens, prontos a revelar, em diferentes momentos, sua inadequação à vida.
Às reflexões que Machado tece, no Capítulo II, acerca da burocracia — à qual aderem os intelectuais independentes, mas que ali acabam soterrados pelo “enfado”, pela “depressão mental”, perdendo o “viço, a coragem e mesmo o ânimo de estudar” — correspondem os estudos e leituras de Gonzaga, “sem filhos, membro de família a extinguir-se”, condenado à “obscuridade a que se havia voluntariamente imposto”; situação que o narrador definirá, páginas depois, no Capítulo VII, tentando criar certo duvidoso elogio, como uma “fraqueza de gênio prático”.
O vencido Gonzaga está sempre propenso, portanto, a fazer o discurso dos ressentidos: sua crítica ao Barão de Rio Branco — tema caro a Lima Barreto — é impiedosa, parcial, injusta. Lastima não ter mantido relações amorosas duradouras; confessa, de forma digressiva e indireta, ser virgem; e acaba por revelar sua misoginia, camuflada quando diz sentir pelas mulheres “uma grande afeição de ordem puramente intelectual”. Tenta envernizar seus pensamentos, mostra-se capaz de gestos solidários em relação a algumas raras pessoas, mas o que prevalece é o ceticismo carregado de ironia:
— Levamos a procurar as causas […] da civilização para reverenciá-las como se fossem deuses… Engraçado! É como se a civilização tivesse sido boa e nos tivesse dado a felicidade!
Augusto Machado chega a tocar a superfície da personalidade do amigo, mas não consegue ir além de uma interrogação:
Gonzaga de Sá seria um apaixonado que não conseguira a tempo encaminhar o seu temperamento para um objeto qualquer, ficara de parte, guardando suas paixões, escondendo seus estos, tanto por timidez como por orgulho?
A pergunta ecoa as questões do narrador de Policarpo Quaresma, citadas acima. Quanto às respostas, Gonzaga de Sá não deixa espaço a dúvidas. Para ele, “a morte tem sido útil, e será sempre […]. Não é só a sabedoria que é uma meditação sobre ela — toda a civilização resultou da morte”. Mais à frente, diz: “Eu julgo […] que os desgraçados se deviam matar em massa a um só tempo”. E logo depois ilustra sua tese com uma história:
[…] Recordo-me que, uma vez, por acaso, entrei numa pretoria e assisti um casamento de duas pessoas pobres… Creio que até eram de cor… Em face de todas as teorias do Estado, era uma coisa justa e louvável; pois bem, juízes, escrivães, rábulas enchiam de chacotas, de deboches aquele pobre par que se fiara nas declamações governamentais.
Ao fim desse relato, quando esperamos que ele, numa reviravolta da consciência, se transforme no porta-voz do “mútuo entendimento dos homens” defendido por Lima Barreto, sua fala descamba para o niilismo feroz:
Não sei porque essa gente vive, ou antes, porque teima em viver! O melhor seria matarem-se, ao menos os princípios químicos, dos seus corpos, logo às toneladas, iriam fertilizar as terras pobres. Não seria melhor?
Por um momento, Gonzaga de Sá parece reencontrar a bondade; interrompe sua fala e conclui: “Não; a maior força do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos…”. Esse pensamento, entretanto, será corroído pela frustração que se revela no penúltimo capítulo, em tudo semelhante à de Isaías Caminha: “[…] As noções que acumulei, não as soube empregar nem para a minha glória, nem para a minha fortuna… Não saíram de mim mesmo… Sou estéril e morro estéril…”. E o burocrata destrambelha, lançando a culpa do seu desgosto sobre os que não o compreenderam:
[…] A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha covardia… Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me ter deixado covardemente entre patos, entre tais perus, burros e maus, agaloados ou não, ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de gratidão e de respeito pelo valor dos outros… […] Que bestas! O que mais me aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de glória, de amizade, só, e quase isolado dos meus e dos que me podiam entender. […] Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais independente… Arrependo-me!… Vênus é uma deusa vingativa!
De fato, é alto o preço de não viver, de dar as costas à realidade, procurando apenas certo mundo ideal.
Morte e vida
De igual patologia sofre Augusto Machado — o “interlocutor indulgente” de Gonzaga de Sá, segundo a perfeita definição de Eugênio Gomes —, que, também insignificante funcionário público, imaturo, quase despersonalizado, incorpora, sem crítica, as conclusões dos amigos. Se Gonzaga demonstra misoginia, logo no capítulo seguinte Machado amplifica, de maneira pueril, o sentimento:
[…] Basta que as mulheres, sejam quais forem as condições delas, não pensem em outra coisa, e queiram-na de qualquer modo até o ponto de fazer a raça humana a mais perfeitamente desgraçada de todas as raças, espécies, gêneros e variedades animais e vegetais do planeta. Eu as acuso!
No Capítulo IX, esse narrador nos oferece longo trecho dedicado às mulheres, no qual o bordão de Gonzaga de Sá — “A dama fácil é o eixo da vida” — repercute, influencia, confunde. As páginas estão entre as mais bem escritas da literatura brasileira, apesar de algumas cacofonias — semelhante ao que Lima Barreto executa no início do Capítulo XI, quando Machado penetra na multidão para esquecer de si mesmo. As prostitutas de origem estrangeira, “cheias de jóias, com espaventosos chapéus de altas plumas”, surgem semelhantes a “velas enfunadas ao vento, impelindo grandes cascos […], transtornando tudo pelas ruas em fora”:
Elas seguem… É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração, fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural.
Tudo se perde sob o fascínio que elas impõem, tudo se anula:
Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos sangram… As inteligências trabalham, as imaginações associam elementos para estelionatos, peculatos e concessões… E tudo acaba nelas; é a elas que se encaminham as riquezas ancestrais, em terras longínquas, em gado nédio e plantações virentes. São para elas que se drenam os ordenados, os subsídios; é a elas também que vão ter os frutos dos roubos e os ganhos das tavolagens. É uma população, um país inteiro que converge para aqueles seres de corpos lassos.
Machado recorda outra afirmação de Gonzaga, para quem essas mulheres “estão se dando ao trabalho de nos polir”, e suas impressões enveredam por um infame utilitarismo, em que as prostitutas são vistas como peças do que ele entende ser a máquina civilizadora:
[…] A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela Grécia de receita com que eles sonham. […] Os maridos que as freqüentassem, levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o sainete mais moderno, o bibelot última moda, e o móvel, e o tecido, e o chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato entre a nossa terra e os grandes centros do mundo, requintando o gosto e o luxo.
Vê-se que nem Gonzaga nem Machado vão além de suas teses naturalistas. E a única definição de amor presente no livro é a que o narrador plagia de seu colega Rangel. Este afirma: “Em meu parecer, nesse negócio de amor o que vale são os preliminares, os estados d’alma preambulares, a agonia da esperança de obter ou não o objeto amado. Mas, quando se toca…”. E Machado, incapaz de ter idéias próprias, resume, respondendo ao conselho de Gonzaga para que namore: “Qual! O namoro é a negação do amor…”.
Mas a realidade se encarregará de perturbar, ainda que momentaneamente, suas falsas certezas. No velório do compadre de Gonzaga de Sá, sentado na sala de jantar, enquanto admira o crepúsculo, a idéia da morte o obseda:
[…] Tinha pensado muito — é verdade; mas sem ter concluído coisa alguma. Nada me ficou palpável na inteligência; tudo era fugidio, escapava-me como se tivesse a cabeça furada. Evaporou-se tudo e eu só sabia dizer: a Morte! a Morte! […]
Poucos minutos depois, ainda no velório, conhece Alcmena, a jovem que o desequilibrará ainda mais. Ela não só discorda, com desembaraço, das suas teorias socialistas e de outras falsas certezas, típicas da juventude, mas o aniquila com sua beleza, lançando-o num estranhamento em que ele, desorientado, se surpreende por estar longe da Rua do Ouvidor.
Esses extremos de morte e vida o impulsionam a sair do mundo cerebral a que se aferra:
[…] era o cadáver que me impelia, que me empurrava para a moça; era sua mudez de fim que me ditava o único ato da minha vida capaz de fugir à lei a que ele se curvara. Vivente, tinha vivido, pois tanto é forte em nós o viver, que só em nós mesmos encontramos a razão e o fim da vida, sabendo todos nós que devemos continuá-la a todo o transe, custe o que custar, em nós mesmos e nos nossos descendentes.
A mulher talvez pudesse libertá-lo. Seu nome guarda essa promessa: na mitologia grega, Alcmena, possuída por Zeus, dá à luz o poderoso Héracles. Mas Augusto Machado é um cerebrino incorrigível; e deixa as emoções serem sufocadas pelo idílio que só consegue manter — e o faz cansativas vezes no decorrer da história — com a natureza.
Condenação
Decorridos alguns dias, após “uma noite má, povoada de recordações amargas”, o narrador, “covardemente desejoso de fugir para lugares longínquos”, pretende desaparecer entre o povo que assiste a um desfile militar. Mas a cena de dois populares orgulhosos dos batalhões, dos regimentos, das bandeiras, desencadeia seu amargor, seu espírito destrutivo. Evidente ressentimento o faz questionar:
Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem social, cheios de necessidades, excomungados falariam tão santamente entusiasmados pelas coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que a queriam de pé, vitoriosa — eles que nada recebiam dela, eles que seriam espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das autoridades, se alguma vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma delas?
Para Augusto Machado, todos os males, incluindo sua própria insignificância, seus próprios limites, têm um só culpado: o “corpo social em que vivemos”. Dessa forma, resta-lhe apenas a batida oratória revolucionária:
E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento todos os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as organizações e as disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer sobre a terra dias de Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as faces humanas sem angústia, felizes, num baile!
Logo a seguir, o fatalismo assoma. Suas frustrações não só o isolam da realidade, mas lançam-no de miragem a miragem, de um extremo a outro:
Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados hábitos de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu abanei a cabeça desalentado. Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição, nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde saem, e só a morte dessas ilusões, só o esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz da perfeita ausência de todas as noções entibiadoras.
A conseqüência de tal raciocínio é a pulsão de morte, de assassinato, chave das mentes revolucionárias:
Tive um louco desejo de acabar com tudo; queria aquelas casas abaixo, aqueles jardins e aqueles veículos, queria a terra sem o homem, sem a humanidade, já que eu não era feliz e sentia que ninguém o era… Nada! Nada!
Essa antiética, essa pseudofilosofia acabam por se expressar, de forma mais concreta, no microcosmo da vida familiar de Gonzaga de Sá. Este decidira, após a morte do compadre, garantir os estudos do órfão, menino inteligente, aplicado. Machado louva a “missão educadora” que a tia de Gonzaga, depois que seu amigo falece, leva adiante, mas não deixa de destilar o fel do pessimismo nos parágrafos que fecham a obra. Segundo ele, Gonzaga e sua tia contribuíam apenas
para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um mal-estar irremediável e, conseqüentemente, um desgosto da Vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da Morte!
Para nossa surpresa, as idéias que Lima Barreto propugnava, de “difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens”, transformam-se na disposição de condenar a criança à total inconsciência.
Naturalismo
Há, como vimos, predominância do naturalismo na obra. Teses infectadas de biologismo surgem logo no primeiro capítulo, em um dos insistentes idílios do narrador com a natureza:
Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o clima e o eito, para que possam sentir nas mais baixas células do organismo a beleza da senhora — a desordenada e delirante natureza do trópico de Capricórnio!…
No Capítulo IX, a ótima descrição dos trabalhadores que retornam ao lar acaba corrompida pelo determinismo, pela necessidade de encontrar condicionamentos biológicos que justifiquem a existência do mal, louvando-o como elemento purificador da realidade:
Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar e fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer… Quiçá não soubessem disso e, se o soubessem não se consolariam do duro fardo de viver… Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga esperança consoladora da afeição eterna dos filhos.
Não deixa de ser curioso esse tom de superioridade que perpassa o livro. O narrador quer nos fazer acreditar que só ele detém a verdade — mas o que vibra sob cada ironia, sob cada comentário ferino, é a inadaptação de Augusto Machado e, tal como Gonzaga de Sá, a personalidade fatalista, o medo de viver, seu complexo de inferioridade, os inconfessáveis ressentimentos que o condenam a emoções e comportamentos distorcidos, a fraqueza moral. Esses venenos sangram inclusive os melhores trechos, como a descrição do subúrbio, nesse mesmo capítulo: em meio ao “arruamento delirante”, o narrador não deixa de lembrar que a “casinha acaçapada” mostra-se “saudosa da toca troglodita”.
Ao tentar romper a retórica ornamentada e vazia da “língua da Bruzundanga”, Lima Barreto não conseguiu dar vida a seu projeto utópico, o de criar a almejada literatura de comunhão entre os homens. Abatido pelo azedume — seu e de suas personagens —, submeteu-se aos discursinhos ideológicos que tencionam, ontem e sempre, comprimir a realidade em poucos, estreitos padrões.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Monteiro Lobato e Negrinha.