Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, é um surpreendente romance que discute, de uma perspectiva metaficcional, a trajetória de um escritor atormentado pela tensão entre o excesso de visibilidade que o sucesso lhe confere e o desejo de desaparecer. Para isso, se utiliza de uma profusão de citações que vão revelando e ajudando a construir um protagonista bem complexo. Portanto, falar da multiplicidade de “eus” que se desdobram no movimento de construção dessa subjetividade não é muito simples. Tentar por sua vez, acompanhar um narrador-leitor compulsivo, tanto de figuras públicas de renome quanto de anônimos ou desfamados, é um esforço de Sísifo.
Aparecimento e desaparecimento são mais fatos ou contingências do que, propriamente, temáticas. O que está em questão é uma luta acirrada entre a busca de sentidos para a vida frente ao absurdo incontestável da morte. Estamos diante do desespero de um sujeito desfocado numa pós-modernidade asfixiante, do homem em sua solidão em meio à multidão de tantos outros que podem lhe servir de espelho, mas não podem lhe salvar do desamparo, da perda de si mesmo e da morte e seus fantasmas.
Escritores e cineastas que aparecem e desaparecem, citados à exaustão, foram seletamente escolhidos para montar essa Biblioteca de Babel em miniatura. De certa forma, parece aquela pretensão das criaturas de Borges de unir tudo em um só livro. Mas neste Doutor Pasavento, 416 páginas estabelecem um limite físico para esse corpo textual marcado pelas infinitas possibilidades de leituras. Em entrevista a Fábio Vitor, da Folha de S. Paulo, Vila-Matas esclarece: “Trabalho com citações como se fossem uma sintaxe para construir o que quero dizer. Na metade das vezes, as citações são inventadas”.
Ora, o que vem a ser essa sintaxe estabelecida a partir de fragmentos e idéias de tantos outros? Serão eles recursos técnicos expressivos de uma linguagem particularmente inventada para dar sustentação a uma rede mais ampla desse tecido-texto? Neste caso, poderíamos considerar que cada citação, copiada ou inventada, por si só já seria suficiente para permitir o desenrolar fluente da narrativa. Isso, entretanto, nem sempre é possível. Cria-se a falsa impressão inicial de que cada referência lança o leitor num poço sem fundo de buscas incansáveis, portanto, inúteis. Ocorreria, com isso, de certa forma, uma dispersão sugerida pela profusão de elementos que se sobrepõem à voz narrativa. A seleção temática dessas vozes intertextuais, entretanto, inibem a pesquisa bibliográfica, desnecessária neste contexto. Ou seja, as referências giram em torno de escritores ou personagens cuja produção artística tematiza o fazer poético, a solidão, as relações entre realidade e ficção, encontros e desencontros, sanidade e loucura, sentidos e absurdos, vida e morte. Atentar para os aspectos temáticos que configuram essas referências facilita a leitura. Isso pode nos conduzir a uma costura desses fragmentos mesmo que seja à custa de uma semântica em abismo, idas e vindas, lidas e relidas para o domínio sempre parcial e precário desse terreno.
Máscaras
Logo nas primeiras páginas, o escritor personagem fala do desejo de viver em um lugar “que tivesse o mesmo encanto daquele hotel diante de um abismo” e do mar, numa cidade sem nome, como o protagonista de um suposto filme Em um lugar á parte… Um lugar onde pudesse entrar em contato com seus abismos internos e externos. Um não-lugar cinematográfico ou fantástico: utopia?
“De onde vem a sua paixão por desaparecer?” — de onde vem a pergunta? Será de Deus, de algum demônio, do amigo que caminha ao lado, real ou imaginário, de algum superego, do fantasma do berço do ensaio (Montaigne)? Não interessa muito quem faz a pergunta: já na primeira página, o narrador precisa respondê-la. “Suspeito que paradoxalmente toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, digamos, suicidas são por sua vez desejos de afirmação do meu eu”. De que eu estaria ele falando? Do eu bem-sucedido que quer desaparecer, ou dos outros eus inventados para se esconder? Afirmar o suposto eu para que e para quem? Para que desaparecer se, quando isso acontece, a decepção de não ser procurado por ninguém é tão violenta quanto o medo de ser descoberto por trás da outras máscaras inventadas?
Ou seja, a infinidade de perguntas que o romance suscita a cada página é um grande mantenedor do suspense e exige do leitor uma atenção permanente nem sempre suficiente para nos livrar dos abismos nos quais somos convidados a penetrar. Vila-Matas explica, em entrevista: “O que crio, sem me dar conta, mas alguns críticos latino-americanos já notaram, é uma espécie de cânone literário particular, com autores que não são necessariamente canônicos. Aí aparecem autores como Robert Walser, Georges Perec…”. Fica claro que o grupo de escritores que aparecem na obra do autor é selecionado pelo critério de identificação em alguns aspectos que lhe são caros, independentemente de sua notoriedade ou mesmo contemporaneidade. O fato é que não é propriamente a sintaxe particular desse estilo que levanta tantas questões ou interfere numa compreensão mais linear da ação. A alternância ou, na maioria das vezes, a confusão dos planos nos quais essa ação se desenvolve é que nos surpreende ou mesmo engana. Cada citação, afirmação ou acontecimento pode se dar nos planos da realidade, do sonho, da imaginação, da esquizofrenia ou da loucura, do desejo ou do faz-de-conta.
O personagem que dá título ao livro, por exemplo, aparece pela primeira vez no capítulo O desaparecimento do sujeito: “Algumas semanas depois, sonhei que alguém a quem chamavam dottore Pasavento havia desaparecido (…) sem deixar rastros. O dottore era parecido com o escritor Bernardo Atxaga, um bom amigo há muitos anos”. O verbo sonhar no início da frase pode passar completamente diluído e fazer com que o narrado a partir daí seja dado como acontecimento do plano da realidade. Algo parecido acontece com a viagem à Sevilha que ocupa grande parte desse primeiro capítulo: “Imaginei de repente que subia num trem na estação de Atocha, em Madri, porque teria combinado me encontrar naquela tarde com Bernardo Atxaga, em Sevilha”. Daí em diante tudo passa a figurar como acontecimentos realizados, uma viagem, um debate, muitas considerações literárias e existenciais, datas e lugares bem definidos e, por fim, a fuga e o desaparecimento.
Sem rastros
Num segundo momento, o tal Pasavento aparece ligado ao filme Caminhos perigosos, de Scorsese, que retrata o envolvimento de jovens nas ruas do Bronx italiano de Nova York: “Não quis que me visse hesitar demais e ali mesmo (…) roubei a juventude de um homem imaginado, um jovem imigrante catalão, de sobrenome Pasavento como eu, que teria passado sua infância e adolescência em Barcelona e parte em Nova York”. Nessa altura, o escritor famoso já se encontrava em uma fuga sem fim, com sua nova identidade em construção: o doutor psiquiatra Pasavento, amigo de De Niro e outros astros cinematográficos na juventude inventada.
Em linhas gerais, este romance trata de um protagonista que, cansado da exposição pública, resolve desaparecer e construir novas identidades em que se esconder. Paradoxalmente, para realizar o desejo de afirmação do “eu”, precisa se livrar dos “outros” e, ao mesmo tempo, metamorfosear-se nos “outros”, roubar-lhes a vida ou aspectos desta. “Vim aqui para me narrar a história do ambíguo desaparecimento do sujeito em nossa civilização (…) como se houvessem injetado em mim toda essa história da subjetividade no Ocidente.” O escrever sobre si, segundo Foucault, desde a antiguidade é uma maneira de se constituir enquanto sujeito. Entretanto, este está submetido ao poder de novas instituições coletivas (o mercado, os governos, as polícias, as clínicas psiquiátricas, o saber científico e acadêmico, as entidades religiosas), que o vigiam e punem, com o objetivo de torná-lo “um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil”, individualizado, muitas vezes isolado e solitário, mas sob controle disciplinar e social. Por outro lado, o narrar-se implica na morte do autor. No romance em discussão, Escrever para se ausentar (título do quarto capítulo) é um artifício do autor que busca desaparecer, sem deixar rastros.
Apesar do doutor Pasavento, no segundo capítulo, O que se dá por desaparecido, ao se construir, afirmar: “Não simpatizo muito com o doutor Freud”, não há como negar a contribuição deste último na compreensão da história da subjetividade moderna, com a descoberta do inconsciente. Como ressalta Stewart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, “para Freud, sentimentos contraditórios e não resolvidos são aspectos chave da ‘formação inconsciente do sujeito’, e que deixam o sujeito dividido (…) embora ele vivencie sua própria identidade como se ela estivesse reunida (…) unificada”. Nesse sentido, “em vez de falar da identidade como coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento”. O sujeito é dividido em diferentes papéis, constitui-se a partir de diferentes referências e identificações, cria-se e recria-se, num movimento incessante e permanente.
“Há episódios de nossa vida ditados por uma discreta lei que nos escapa.” Esta foi uma frase com que o escritor famoso ensaiava iniciar uma conferência imaginada em Sevilha. Estaria se referindo aos episódios ditados pela lei discreta do inconsciente? Estaria entrando no mundo metafísico de um Hamlet? Ou estaria apoiado nas premissas de Derrida, em Escritura e diferença, que pressupõe que “existem sempre significados suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis”?
Radical
Seja qual for a motivação, o protagonista deste romance radicaliza, através da escrita de si, essa perspectiva do sujeito descentrado contemporâneo. Desaparece através da escritura de “eus” inventados através de vários personagens com os quais se identifica. Transita por cidades, ruas e manicômios desenhando uma cartografia afetiva incongruente e contraditória, em sua busca desenfreada para desaparecer. De celebridade, assume a identidade de doutor Pasavento, mais adiante, um modesto psiquiatra doutor Pynchon. Em alguns momentos, confunde-se com um fantasma, uma sombra, um superego, o doutor Ingravallo, ou ensaia um pacto com o diabo. Nessa escrita diária, a confissão: o passado como fantasma presente retorna implacável. “Passei o dia pensando em minha filha Nora. Na realidade nunca pude me acostumar à idéia de sua morte. Na realidade, Nora foi desde então o eixo central da minha vida atormentada.”
Persegue o caminho percorrido por Robert Walser, o escritor suíço que se ausenta num manicômio durante os 27 últimos anos de sua vida e pelo qual nutre uma admiração apaixonada. Diferentemente de Walser, continua compulsivamente escrevendo em pequenos manuscritos, com uma caligrafia cada vez menor. Escreve para buscar sentidos, para desaparecer para o público ávido de notoriedade, para se encontrar em um lugar à parte em frente ao abismo de seus eus dispersos ou reencontrados. Escreve para driblar a morte cotidiana, escreve para recriar a vida, com todos seus desatinos e suas precariedades.