O surgimento da graphic novel ou romance gráfico na indústria das HQs, creditado a Will Eisner no final dos anos 1970, possibilitou aos autores trabalharem narrativas mais complexas e de maior fôlego, além de fazerem experimentações com a linguagem dos quadrinhos. Apesar de muita gente ainda associar HQs a super-heróis hipertrofiados ou personagens infantis, o formato conferiu ao gênero um status nivelado ao da literatura e ao do cinema. Tanto que o trânsito entre essas artes se tornou cada vez mais comum ao longo dos anos, com alguns bons resultados.
Em específico sobre a relação entre quadrinhos e literatura, a habilidade de se expressar em ambas as artes marcou a carreira de autores consagrados com Alan Moore, Neil Gaiman e, no Brasil, Lourenço Mutarelli, para ficar apenas em nomes mais conhecidos cujo talento migrou das HQs para o romance.
Em Cachalote, temos um projeto um tanto incomum de um escritor, Daniel Galera, autor dos contos de Dentes guardados e de romances como Cordilheira e Mãos de Cavalo, que buscou os recursos gráficos da HQ para contar uma história. A colaboração com o ilustrador Rafael Coutinho, filho do cartunista Laerte, produziu uma das melhores graphic novels brasileiras da nova geração, o que contribui para sedimentar o mercado no país.
Se a obra traz a profundidade de leituras que encontramos habitualmente em livros, não se deve pelo fato da HQ parecer uma série de contos ilustrados, mas devido à plena consciência dos autores de que a linguagem dos quadrinhos é uma mistura de códigos visuais — a palavra e a imagem. Ou seja, não se trata simplesmente de ilustrar uma história, mas de encontrar soluções narrativas e visuais na fusão entre signos verbais e icônicos propiciada pelas HQs. Prova disso é que, em entrevista recente, Daniel Galera disse que personagens e histórias foram compostas em conjunto a partir de um roteiro-base escrito por ele. No percurso, ganhou corpo o produto final, em forma e conteúdo.
A maturidade narrativa de Galera emerge da história contada em eficientes cenários e no traço seguro e pessoal de Rafael Coutinho. Não há propriamente inovação da linguagem, não no sentido de exploração dos limites do meio (como o próprio Eisner, já citado, o fez), mas uma história contada com toda a complexidade que o formato permite. Sem cenas de ação ou surpresas, a leitura é lenta e fluida na medida em que os autores nos envolvem em seus personagens, cheios de defeitos e misérias pessoais, fracos e comuns. As identidades secretas, aqui, revelam apenas o humano.
Cachalote traz seis histórias centralizadas em personagens e seus difíceis relacionamentos, contadas de modo intercalado, sem que se cruzem em momento algum ou cheguem a um ponto final. A título de coerência (apenas aparente), a primeira história, uma fantasia envolvendo uma velha, uma criança e a baleia que dá título à obra, abre e encerra a HQ. Nas demais temos um ator chinês decadente acusado de envolvimento na morte de um amigo, um escultor obcecado por sua arte, um garoto que pratica bondage (fetiche de imobilizar o parceiro no sexo), um playboy que fica por conta própria em Paris e um casal divorciado e sua filha.
Em todas elas, o que sobressai é a dificuldade dos personagens em se relacionarem com os outros, em romper a membrana de suas individualidades para vivenciarem uma interação real. Tema, por sinal, urgente em tempos de tecnologias que prometem mais sociabilidade.
Um dos melhores “contos” é o do vendedor de loja de ferragens, um garoto que gosta de amarrar suas amantes e se apaixona por uma moça — cujo rosto nunca é mostrado — com uma pele extremamente sensível, que se rompe a cada encontro amoroso. E assim, em cada relato, cada personagem tem que conviver com os limites que os impedem de atingir o outro, de conseguir uma relação plena sem que se fragmentem em suas próprias angústias e medos. Como se entre eles pairasse uma imensa baleia cinza, pesada, encalhada numa praia.
Outra trama interessante em Cachalote envolve um escritor depressivo que se encontra com sua ex-mulher. Dentro da história há um breve relato do encontro com um vizinho do escritor, mediado por uma cerca que separa os quintais. Entre outras banalidades cotidianas, o vizinho — um total desconhecido — menciona a doença da mulher, revelando emoções e intimidade. A história do escritor e sua ex-mulher contém os mesmos traços de fragilidade, de contatos somente possíveis, paradoxalmente, por delicados pontos desfiados, de rompimentos (aqui representados pela separação do casal). É também uma das histórias com o final mais belo, ainda que melancólico.