Em certo(s) sentido(s), e apesar de toda a visibilidade alcançada nos últimos anos, Maria Firmina dos Reis permanece uma figura desconhecida. Ao afirmá-lo, refiro-me não apenas ao fato de a autora de Úrsula não ser ainda um nome familiar para o grande público — visto que, considerando as especificidades da realidade brasileira, isso em nenhum sentido pode ser considerado algo excepcional —, mas também à sua relativamente reduzida penetração em meios acadêmicos: sem desconsiderar o crescente volume de artigos, trabalhos monográficos, dissertações e teses dedicadas à sua obra, bem como os diversos eventos que a ela vem sendo dedicados, importa ressaltar que Maria Firmina dos Reis não ocupa ainda a posição curricular que lhe é devida — o que indicia quão longe estamos de reconhecer sua importância e relevância.
Ainda assim, o cenário é substancialmente mais favorável do que aquele anterior a 2017, ano que constituiu um ponto de virada em decorrência das celebrações em torno do centenário de falecimento da autora. A importância dessa data pode ser assinalada por um recenseamento, meramente quantitativo, das edições do romance Úrsula publicadas até aquele momento — apenas cinco, havendo se passado mais de um século desde a primeira edição, de 1859, até a segunda, de 1975 — e a concentração de reedições posteriores ao ano do centenário, somando mais de uma dezena. Não obstante, se Maria Firmina vem sendo hoje estudada com o devido rigor por pesquisadoras e pesquisadores sérios e comprometidos com a tarefa de propiciar-lhe o merecido reconhecimento, as particularidades da produção firminiana — se não extensa, consideravelmente densa, em suas diversas expressões — suscitam desafios hermenêuticos que apenas a consolidação de uma tradição interpretativa, equipada com os aparatos metodológicos apropriados, poderá adequadamente contemplar.
Celebrado como primeiro romance de autoria negra e feminina do Brasil, Úrsula foi a obra de estreia de Maria Firmina dos Reis, que o publicou sob o pseudônimo “Uma Maranhense…”. A então professora do sistema público de ensino, duplamente marcada pela condição de negra e filha bastarda, fez de seu romance inaugural uma obra que, se por um lado envereda por sendas tipicamente românticas — ao narrar o imprevisto envolvimento da jovem Úrsula em um triângulo amoroso que tem, nos outros vértices, o amargurado estudante Tancredo e o pérfido comendador Fernando P. —, por outro lado abre espaço para um discurso ostensivamente abolicionista. Maria Firmina não hesita em fazer de suas personagens negras figuras icônicas da luta contra a escravidão — a inscrição de Túlio e preta Susana no repertório romântico brasileiro ainda não foi plenamente equalizada; para além disso, há na obra notáveis críticas à ordem patriarcal, visto que virilidade e tirania emergem como elementos essencialmente imbricados.
O modo como a escritora maneja elementos característicos da estética romântica, no que diz respeito à representação da natureza, à construção dicotômica das personagens e à exacerbação patética, revela-se invariavelmente vinculado a um compromisso ético fundamental que perpassa toda a obra, determinando a visão de mundo que lhe é particular. Ainda que parte da crítica demonstre reservas quanto ao que percebe como escassez de complexidade psicológica dos personagens, se analisada à luz da produção romanesca oitocentista como um todo — ou seja: caso se leve em conta um corpus que não se limite às obras consideradas excepcionais, produzidas naquele período —, Úrsula se revela uma obra francamente acima da média.
A edição recentemente publicada pela editora Zouk é enriquecida por três textos introdutórios: em Maria Firmina dos Reis: intérprete do Brasil, Rafael Balseiro Zin faz uma breve apresentação da autora e da obra; em Uma voz das margens: do silêncio ao reconhecimento, Rita Terezinha Schmidt insere Úrsula em seu tempo, enfocando notavelmente suas qualidades literárias; já Úrsula: a diferença como exclusão e como desejo de reconhecimento é um poderoso ensaio, assinado por Eliane Marques, que desvela instigantes possibilidades de leitura para o romance. Vale ainda destacar a belíssima capa, composta a partir de uma obra de Renata Felinto — uma das mais importantes artistas plásticas negras da atualidade.
Fortuna crítica
Um dos nomes de maior destaque entre os atuais pesquisadores da obra firminiana, o já citado Rafael Balseiro Zin assina o recém-publicado Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista. Versão em livro de sua dissertação de mestrado, o volume já nasce destinado a ocupar um lugar de referência na fortuna crítica, visto que apresenta as mais recentes discussões tanto a respeito da produção literária de Maria Firmina quanto acerca das investigações de viés biográfico. Estruturado em três capítulos, o livro realiza, com notável competência, as tarefas de apresentar a autora, inscrevendo-a em sua época, e oferece uma proveitosa introdução à sua literatura; ademais, é valiosa a lista de referências constante do volume, que não só elenca todas as edições e reedições das obras de Maria Firmina, como também apresenta uma bibliografia selecionada e um levantamento de dissertações e teses desenvolvidas até 2019.
A revisão da fortuna crítica firminiana levada a cabo por Rafael Balseiro Zin cumpre cabalmente a finalidade a que se propõe; ao fazê-lo, não obstante, evidencia um conjunto de questões que ainda demandam um maior aprofundamento crítico. Ao comentar o prólogo escrito por Maria Firmina para Úrsula, por exemplo, o pesquisador analisa o tom de súplica e modéstia nele presentes como uma justificativa que pode ser associada aos “primeiros sinais de sua preocupação”, no que diz respeito à recepção do romance; contudo, embora destaque ser essa uma “estratégia bastante comum” para as escritoras oitocentistas, não há uma análise mais minuciosa acerca do modo como esse discurso atendia a demandas (patriarcais), ou sobre como o referido texto se inscreve em sua época enquanto componente fundamental de produções literárias de autoria feminina. Similarmente, Zin qualifica o romance como “marcado pela linearidade narrativa e pela construção de personagens desprovidas de maior complexidade psicológica”, seguindo interpretação já proposta por Eduardo de Assis Duarte; todavia, isso não proporciona uma apreciação mais aprofundada de como o procedimento empregado por Maria Firmina para a construção de seus personagens se articula com recursos vigentes na estética romântica, sobretudo no que tange ao tratamento dispensado pela autora à subjetividade dos personagens negros.
É fato que há um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores dispostos a enfrentar essas questões — a esse respeito, vejam-se os artigos compilados em Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora (volume organizado por Constância Lima Duarte, Luana Tolentino, Maria Lúcia Barbosa e Maria do Socorro Vieira Coelho, publicado em 2018 pela editora Malê), no qual essas (e outras) questões são abordadas. No entanto, ainda há muito a ser explorado na obra firminiana; e, se, como afirmei no início deste texto, Maria Firmina dos Reis permanece uma figura desconhecida, o livro de Rafael Balseiro Zin é uma contribuição de inestimável relevância para transformar este panorama.