Icônica e desconhecida

Mesmo celebrada como primeira romancista negra do Brasil, Maria Firmina dos Reis e seu romance mais célebre, Úrsula, seguem pouco discutidos
Busto de Maria Firmina, autora de Úrsula
29/10/2019

Em certo(s) sentido(s), e apesar de toda a visibilidade alcançada nos últimos anos, Maria Firmina dos Reis permanece uma figura desconhecida. Ao afirmá-lo, refiro-me não apenas ao fato de a autora de Úrsula não ser ainda um nome familiar para o grande público — visto que, considerando as especificidades da realidade brasileira, isso em nenhum sentido pode ser considerado algo excepcional —, mas também à sua relativamente reduzida penetração em meios acadêmicos: sem desconsiderar o crescente volume de artigos, trabalhos monográficos, dissertações e teses dedicadas à sua obra, bem como os diversos eventos que a ela vem sendo dedicados, importa ressaltar que Maria Firmina dos Reis não ocupa ainda a posição curricular que lhe é devida — o que indicia quão longe estamos de reconhecer sua importância e relevância.

Ainda assim, o cenário é substancialmente mais favorável do que aquele anterior a 2017, ano que constituiu um ponto de virada em decorrência das celebrações em torno do centenário de falecimento da autora. A importância dessa data pode ser assinalada por um recenseamento, meramente quantitativo, das edições do romance Úrsula publicadas até aquele momento — apenas cinco, havendo se passado mais de um século desde a primeira edição, de 1859, até a segunda, de 1975 — e a concentração de reedições posteriores ao ano do centenário, somando mais de uma dezena. Não obstante, se Maria Firmina vem sendo hoje estudada com o devido rigor por pesquisadoras e pesquisadores sérios e comprometidos com a tarefa de propiciar-lhe o merecido reconhecimento, as particularidades da produção firminiana — se não extensa, consideravelmente densa, em suas diversas expressões — suscitam desafios hermenêuticos que apenas a consolidação de uma tradição interpretativa, equipada com os aparatos metodológicos apropriados, poderá adequadamente contemplar.

Celebrado como primeiro romance de autoria negra e feminina do Brasil, Úrsula foi a obra de estreia de Maria Firmina dos Reis, que o publicou sob o pseudônimo “Uma Maranhense…”. A então professora do sistema público de ensino, duplamente marcada pela condição de negra e filha bastarda, fez de seu romance inaugural uma obra que, se por um lado envereda por sendas tipicamente românticas — ao narrar o imprevisto envolvimento da jovem Úrsula em um triângulo amoroso que tem, nos outros vértices, o amargurado estudante Tancredo e o pérfido comendador Fernando P. —, por outro lado abre espaço para um discurso ostensivamente abolicionista. Maria Firmina não hesita em fazer de suas personagens negras figuras icônicas da luta contra a escravidão — a inscrição de Túlio e preta Susana no repertório romântico brasileiro ainda não foi plenamente equalizada; para além disso, há na obra notáveis críticas à ordem patriarcal, visto que virilidade e tirania emergem como elementos essencialmente imbricados.

O modo como a escritora maneja elementos característicos da estética romântica, no que diz respeito à representação da natureza, à construção dicotômica das personagens e à exacerbação patética, revela-se invariavelmente vinculado a um compromisso ético fundamental que perpassa toda a obra, determinando a visão de mundo que lhe é particular. Ainda que parte da crítica demonstre reservas quanto ao que percebe como escassez de complexidade psicológica dos personagens, se analisada à luz da produção romanesca oitocentista como um todo — ou seja: caso se leve em conta um corpus que não se limite às obras consideradas excepcionais, produzidas naquele período —, Úrsula se revela uma obra francamente acima da média.

A edição recentemente publicada pela editora Zouk é enriquecida por três textos introdutórios: em Maria Firmina dos Reis: intérprete do Brasil, Rafael Balseiro Zin faz uma breve apresentação da autora e da obra; em Uma voz das margens: do silêncio ao reconhecimento, Rita Terezinha Schmidt insere Úrsula em seu tempo, enfocando notavelmente suas qualidades literárias; já Úrsula: a diferença como exclusão e como desejo de reconhecimento é um poderoso ensaio, assinado por Eliane Marques, que desvela instigantes possibilidades de leitura para o romance. Vale ainda destacar a belíssima capa, composta a partir de uma obra de Renata Felinto — uma das mais importantes artistas plásticas negras da atualidade.

Fortuna crítica
Um dos nomes de maior destaque entre os atuais pesquisadores da obra firminiana, o já citado Rafael Balseiro Zin assina o recém-publicado Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista. Versão em livro de sua dissertação de mestrado, o volume já nasce destinado a ocupar um lugar de referência na fortuna crítica, visto que apresenta as mais recentes discussões tanto a respeito da produção literária de Maria Firmina quanto acerca das investigações de viés biográfico. Estruturado em três capítulos, o livro realiza, com notável competência, as tarefas de apresentar a autora, inscrevendo-a em sua época, e oferece uma proveitosa introdução à sua literatura; ademais, é valiosa a lista de referências constante do volume, que não só elenca todas as edições e reedições das obras de Maria Firmina, como também apresenta uma bibliografia selecionada e um levantamento de dissertações e teses desenvolvidas até 2019.

A revisão da fortuna crítica firminiana levada a cabo por Rafael Balseiro Zin cumpre cabalmente a finalidade a que se propõe; ao fazê-lo, não obstante, evidencia um conjunto de questões que ainda demandam um maior aprofundamento crítico. Ao comentar o prólogo escrito por Maria Firmina para Úrsula, por exemplo, o pesquisador analisa o tom de súplica e modéstia nele presentes como uma justificativa que pode ser associada aos “primeiros sinais de sua preocupação”, no que diz respeito à recepção do romance; contudo, embora destaque ser essa uma “estratégia bastante comum” para as escritoras oitocentistas, não há uma análise mais minuciosa acerca do modo como esse discurso atendia a demandas (patriarcais), ou sobre como o referido texto se inscreve em sua época enquanto componente fundamental de produções literárias de autoria feminina. Similarmente, Zin qualifica o romance como “marcado pela linearidade narrativa e pela construção de personagens desprovidas de maior complexidade psicológica”, seguindo interpretação já proposta por Eduardo de Assis Duarte; todavia, isso não proporciona uma apreciação mais aprofundada de como o procedimento empregado por Maria Firmina para a construção de seus personagens se articula com recursos vigentes na estética romântica, sobretudo no que tange ao tratamento dispensado pela autora à subjetividade dos personagens negros.

É fato que há um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores dispostos a enfrentar essas questões — a esse respeito, vejam-se os artigos compilados em Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora (volume organizado por Constância Lima Duarte, Luana Tolentino, Maria Lúcia Barbosa e Maria do Socorro Vieira Coelho, publicado em 2018 pela editora Malê), no qual essas (e outras) questões são abordadas. No entanto, ainda há muito a ser explorado na obra firminiana; e, se, como afirmei no início deste texto, Maria Firmina dos Reis permanece uma figura desconhecida, o livro de Rafael Balseiro Zin é uma contribuição de inestimável relevância para transformar este panorama.

Úrsula
Maria Firmina dos Reis
Zouk
288 págs.
Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista
Rafael Balseiro Zin
Aetia Editorial
144 págs.
Maria Firmina dos Reis
Nasceu em São Luís do Maranhão, em 11 de março de 1822. Negra, filha bastarda, aos cinco anos foi viver na casa de uma tia materna. Formando-se professora, foi aprovada em 1847 para a Cadeira de Instrução Primária na cidade de Guimarães, permanecendo no magistério até sua aposentadoria, no início de 1881. Neste mesmo ano, fundou uma escola mista e gratuita. Além de Úrsula, publicou também Gupeva, romance brasiliense, Cantos à beira-mar e A escrava.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

Rascunho