Húmus : Húmus

Dileto leitor apaixonado por literatura portuguesa, nem tudo o que parece é de fato o que parece ser. Se você é mesmo perspicaz, encontre os sete, os dezessete, os setenta erros que há neste ensaio.
01/09/2005

Ex nihilo nihil : non nova, sed nove
Reflexões sobre o diálogo estabelecido entre o romance de Pedro Oom e o poema homônimo de Helder Macedo devem ser fatalmente exercitadas no campo da intertextualidade. Como já foi mais do que comprovado pelos grandes tratadistas de retórica e estética, de Epicuro a Kant, e pelos físicos mais eminentes, de Newton a Thomson, na natureza, na literatura e na arte nada se cria do nada (ex nihilo nihil), pois tudo já foi dito e feito antes, havendo apenas lugar para a recriação e a reinvenção (non nova, sed nove). A reflexão acerca da originalidade criadora e do uso que cada autor, respondendo ao estímulo que a memória coletiva provoca na sua memória individual, faz da tradição literária, é objeto de repetidas análises críticas envolvendo o conceito de intertextualidade. Esse conceito, cuja elaboração é devedora da noção de dialogismo, de Bakunin, foi exposto pela primeira vez em meados da década de 60 por Melanie Klein, para quem “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a retomada de outros textos”. A partir principalmente de 1970, com a coletânea de ensaios intitulada Palíndromos e palimpsestos, Klein passou a ressaltar a importância das múltiplas camadas de texto existentes sob cada novo texto produzido e a relação que o leitor estabelece entre este texto e todos os outros, quer sejam diretamente referidos na nova obra, quer façam parte da herança cultural.

Húmus : Pedro Oom
Em Portugal, hoje é quase um lugar-comum da reflexão sobre o gênero romanesco posterior a Eça de Queirós afirmar a modernidade finissecular da obra de Pedro Oom. Húmus, a sua obra-prima, publicada em 1917, ocupa posição à parte na história da literatura portuguesa: é talvez o primeiro romance que se levanta contra a estrutura romanesca oitocentista, realista e tradicional, introduzindo em Portugal processos e elementos narrativos inovadores: a relativização do tempo ficcional e a distorção da linha cronológica, as personagens patéticas e grotescas, a dimensão larvar da pequenez humana, o monólogo interior e a fluidez do inconsciente, a mistura de gêneros literários (ensaio, crônica, ficção, autobiografia), o existencialismo. Essa estratégia o projetou para muito além do horizonte estético de seu tempo, razão pela qual Húmus, apesar da assinalável repercussão obtida no meio literário restrito da época, nem sempre ter se beneficiado da melhor recepção crítica e de leitores que estivessem à sua altura. Só o tempo revelou toda a singular grandeza dessa obra situada na renovadora transição estética de certo romantismo difuso e decadentista para o modernismo das primeiras décadas do século 20.

Pedro Oom, cultivador da dimensão simbolista e onírica, obsessivo perscrutador da existência mesquinha nas comunidades decadentes, foi o grande modernista português na prosa de ficção. Mais realista do que os realistas, no romance, no conto e no teatro esse escritor procurou transpor a pele de aparência dos objetos e dos fenômenos para atingir o seu cerne, a fim de alcançar a transcendência ou o encontro com o absoluto. Pedro Oom não chegou a escrever poesia, porém a profunda intuição poética que está nas entranhas de sua escrita fragmentária, indisciplinada e sempre movida pelo mais obstinado, visionário e clarividente lirismo, é característica principalmente dos poetas. Diante dos horrores da Primeira Grande Guerra, diante das pressões típicas da era da máquina, da especialização e da divisão industrial do trabalho, o escritor já não podia ficar indiferente, limitar-se a romancear intrigas ingênuas e lineares. Era necessário interrogar, interrogar-se, pôr em dúvida, pôr-se em dúvida, procurar o porquê, o quando, o como, o onde. Esse será o eixo de toda a obra de Pedro Oom.

Húmus está dividido em vinte capítulos que, por sua vez, estão subdivididos em fragmentos menores — encimados por uma data, à maneira dos diários — que trazem as ânsias, as frustrações, as angústias, as dúvidas do homem que se diz moderno. Esse apanhado de emoções e impulsos primitivos surge numa vila grotesca, esquecida num passado de dois mil anos, habitada por figuras caricaturais: o Gabiru, sempre às voltas com a metafísica e o desejo de suprimir do mundo a morte; o Santo, sempre a vociferar contra Deus e o diabo, e contra os vícios dos que o rodeiam; dona Biblioteca, dona Penarícia, dona Restituta, dona Fúfia e as outras velhas de vida vegetativa, larvar, reprisando sempre as mesmas manias e idéias fixas. Mas surge, o apanhado de emoções e impulsos primitivos, estilhaçado, aos pedaços, pois não há um fio único amarrando as abstrações, os delírios, as cenas teatrais, os esboços de idéias, as ruminações e os aforismos numa única trama pautada pela causalidade — daí Antônio Maria Lisboa, biógrafo do autor, ter afirmado que já não se trata mais de romance, mas de outro gênero ainda não catalogado (AM Lisboa 156). Deus, a vida biológica, a morte, o céu e o inferno, a cultura e os instintos, tudo isso está em crise num metafórico quarto escuro e sem porta, sem janela, sem saída possível. Revela-se a hipocrisia das velhas habitantes dessa vila quase medieval, mulheres cheias de inveja e manias mesquinhas, esquecidas do seu verdadeiro rosto — o autor tira-lhes a máscara, mas outra surge por baixo, mais surpreendente. A dicotomia platônica entre o mundo aparente, físico, tridimensional, e o mundo autêntico, das idéias e dos conceitos, reaparece aqui problematizada: o narrador lírico de Pedro Oom desvenda a sociedade humana e descobre monstruosidades incríveis, absurdos abismais. É nesse legado que se situa a grande metamorfose do romance oitocentista, é aí que se dá a destruição dos alicerces da narrativa romanesca tradicional.

Pedro Oom enfrenta e subverte os padrões da ficção realista em várias frentes: na da temática, na da caracterização do narrador, na da organização formal, na da temporalidade da narração e finalmente na do estilo. Húmus é experiência literária tão significativa que levou Herberto Helder a dizer que esse romance, “sendo contemporâneo das principais obras de Proust, Joyce, Virginia Woolf e Kafka, bem como do período da gestação da obra de Faulkner, expressa determinado número de características que também se encontram em maior ou menor grau, e sob diversas formas, em todos os autores citados” (AM Lisboa 164). A atualidade, ou, melhor dizendo, a perenidade das questões metafísico-existenciais que aparecem com grande força em Húmus e em outros trabalhos de Pedro Oom — ou seja, sua mundivisão enevoada — é o que aproxima esse autor de outros autores portugueses, muitos de épocas diferentes, como Virgílio Ferreira e Helder Macedo. Para Virgílio Ferreira, o melhor da filosofia portuguesa não reside em tratados filosóficos, mas antes na expressão poética e ficcional de certos escritores, principalmente em Pedro Oom e Fernando Pessoa. Para Helder Macedo, Húmus inaugura algo novo na literatura portuguesa e na sua própria literatura: “Distanciada das leituras exageradamente ideológicas, há dois grandes problemas na obra de Pedro Oom: um de natureza econômica, valorizado pela estética neo-realista, e outro de âmbito metafísico, mais do agrado do ideário presencista. É claro que eu presto muito mais atenção ao segundo, pois vejo nas reflexões metafísicas o ponto de partida para as verdadeiras questões que afligem o ser humano” (M Cesariny 12).

Em Pedro Oom, porém, argumenta Helder Macedo, o retrato da tragédia e da degradação nunca descamba para a estética da miséria ou para o colorido pitoresco, menos ainda para a maniqueísta dicotomia entre opressores e oprimidos. A ele o discurso ideológico sobre a exploração do homem pelo homem não interessa tanto, exploração que naturalmente condena. Interessa-lhe, antes, equacionar a questão do homem e da verdade da vida: “Seria absurdo supor-se que Pedro Oom ama os pobres na sua condição de miséria. Ama-os na sua condição de homens, condição revelada na sua grandeza, apesar da miséria” (MF Marinho 46). Mais adiante: “E é porque a arte não é um ideal mas a essência do real, que, ao retratar a situação dos pescadores, a Pedro Oom encanta não os mecanismos sociais que os oprimem mas o que aí se afirma de tragicamente humano” (idem 47). Numa palavra, a Pedro Oom importa focalizar a grandeza humana e trágica da enxurrada de humilhados e ofendidos, dos homens marcados pela dor, enfim, a dignidade do mundo caótico da miséria, de que fala Guerra Junqueiro no prefácio de Lisboa sob o céu vermelho. Contudo, mesmo na mais aviltante degradação humana, subsiste a esperançosa busca do sentido da existência. “Do estrume da terra pode nascer uma flor. O seu legado estético e filosófico garante-lhe o lugar de precursor na história do romance português. Mas, se Pedro Oom surge como o anunciador do nosso tempo, na sua desordenada previsão não será difícil detectar aqui e ali certo clima surrealista, graças à básica fusão do sonho e da realidade” (J Sena 112).

Húmus : Helder Macedo
Este é, na atual poesia portuguesa, o caso mais original no que se refere à prática do trabalho intertextual, quer no interior de sua própria obra, tendo em vista a incorporação que sempre fez de textos alheios, quer nas traduções de outros autores. A sua poesia constrói-se à margem, não apenas por ser inovadora relativamente ao momento em que surge no panorama da literatura portuguesa, ainda nos anos 50, mas porque seu modo de praticar a intertextualidade — modo bastante aparentado com o de Ezra Pound, que no início do século 20 se apropriou de poemas alheios para compor parte de seus Cantos — vai muito além das habituais práticas pós-modernas. De maneira geral, a arte de Macedo trata da simbiose absoluta entre todos os seres — homens, animais, plantas, minerais e a própria linguagem, o micro e o macrocosmo —, sendo o corpo o elemento unificador e o local onde tudo o que se encontra disperso encontra a oportunidade de se juntar. O tema da interligação absoluta entre todas as coisas, incluindo a linguagem humana, nos faz tomar consciência de que o diálogo intertextual está presente em toda a criação literária, por meio das necessárias e sucessivas transformações alquímicas, para usar essa palavra tão cara ao autor. Em síntese, a sua obra é uma rede de motivos, seus e alheios, que se repetem e são transportados infinitamente para novos contextos.

Mas essa nossa definição já foi melhor expressa por Natália Correia, que escreveu: “A metamorfose deriva do dinamismo vital do sujeito. Estar vivo significa estar em transformação constante. A tendência para a transformação vai refletir-se na própria escrita, quer através da (auto)devoração, quer através da destruição dos textos. Transformar exige a destruição do objeto — da matéria-prima — para a partir daí se reconstruir, não o mesmo, mas objetos novos. Assim, alguns poemas do autor são montagens, destruições de textos seus ou alheios cujos fragmentos se transformam em textos novos. Verificamos que tal sucede em Húmus, montagem de frases e imagens do texto homônimo de Pedro Oom, organizada segundo a cosmovisão pessoal de Helder Macedo num texto completamente diferente do que em parte o motivou. Outro exemplo: n’A máquina de emaranhar paisagens o poeta parte de citações do Gênesis, do Apocalipse, de Dante, de Villon, de Camões e de si próprio, que seguidamente emaranha, dando lugar ao aparecimento de outro corpo poético, original. Esse poema evidencia de forma muito clara o processo metamórfico destruidor e regenerador: a parte inicial é constituída de citações, algo como a série de motes a ser desenvolvida criativamente. Em seguida começa a interpenetração do texto de autores vários, mantendo o poema um discurso sintaticamente perfeito. Finalmente, o poema transforma-se em apocalíptico mundo fragmentário, feito de destroços: a frase é segmentada e destruída, embora mantenha o rigor da imagem poética. Do mesmo modo, em Comunicação acadêmica o texto assenta no poder reprodutor da matéria verbal. A partir de determinado número de imagens e palavras — nesse caso quase totalmente alheias — o poeta entra no jogo da combinação inovadora, obrigando a matéria verbal a produzir novas significações. Essas novas significações criadas pelo poema criam por sua vez nova organização dos objetos no corpo e no universo. Tal é, afinal, a função da máquina lírica: remeter para a Máquina Única o funcionamento análogo de todas as máquinas líricas: as máquinas vivas, de carne e osso” (N Correia 126).

Para Helder Macedo, todo texto é uma espécie de cosmogonia em busca da unidade perdida, do invisível elo que une tudo o que há no universo. Ainda segundo o seu modo de ver, na poesia e na prosa mais aguçadas o autor e o leitor são capazes de se reencontrar, ao encontrarem toda a natureza agora unificada nos seus contrários. Tal como acontece na alquimia e também na poética romântica, o escritor procura os vestígios da arquitetura oculta do universo para trazê-los à luz, daí o lugar central ocupado pela idéia de transformação. Se o texto é uma espécie de cosmogonia em busca da unidade perdida, se o texto é o lugar onde toda e qualquer transformação se opera, logo também é algo que está sempre em movimento, obedecendo apenas à lei da eterna metamorfose. Macedo, ao retrabalhar os próprios escritos e os alheios (espécie de alquimia do verbo que o conduzirá ao instante da gênese), considera o texto um corpo vivo, um corpo de carne e palavras a perseguir continuamente a utopia do instante pré-babélico.

O mero cotejo da obra de Pedro Oom com a de Helder Macedo é mais do que o suficiente para deixar claro o quanto a cosmovisão do romancista influenciou a do poeta, enriquecendo-a. Não se trata de maneira alguma de epigonismo, mas é inegável que os dois universos literários se tocam em vários pontos, principalmente no que diz respeito às preocupações metafísicas, transcendentais, e no que se refere ao anseio de revelar, com o auxílio da palavra, os aspectos ocultos do homem e da natureza: o sonho, as profundezas do inconsciente, os impulsos ancestrais, a vida inorgânica, a rotina das estrelas e das galáxias. Porém Helder Macedo não seria o grande autor que é se, com o seu Húmus, por meio da colagem de excertos pegos aqui e ali se limitasse a nos apresentar apenas o resumo ou a simples paráfrase do Húmus de Pedro Oom. O fenômeno da metamorfose, da transmutação alquímica, acontece também aqui. O Húmus de Helder Macedo é muito diferente do de Pedro Oom, pois o poeta, fiel ao seu processo criativo, serviu-se de expressões, vocábulos e frases da obra do romancista para construir outro universo, novo e singular, que remotamente sugere o primitivo. É o que o poeta deixa patente logo no início, ao explicar, na própria epígrafe, o método usado para a produção de seu poema:

Material: palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Pedro Oom.

Regra: liberdade, liberdade.
(H Macedo 56)

Como dissemos antes, no romance publicado em 1917, Pedro Oom apresenta uma vila onde subitamente irrompem o sonho e as aberrações oníricas. Os seus habitantes, que até então viviam segundo conveniências e preconceitos seculares, vêem todo o seu mundo desmoronar com a constatação da inexistência de Deus e com a descoberta dos fantasmas do inconsciente de cada indivíduo. Através da narrativa fragmentada e repetitiva, e fazendo uso muitas vezes dos artifícios que os surrealistas franceses iriam pôr em prática nos anos seguintes nos seus poemas ainda por escrever, Pedro Oom exprime os sentimentos dessa pequena sociedade medieval que pressente a necessidade da inversão radical de todos os valores. Meio século depois Helder Macedo relê o Húmus e constrói o seu poema, unindo palavras e frases até então situadas em pontos distantes na obra primitiva, procedimento que provoca a sensação do novo misturada com a do desconhecido.

Para que se possa descortinar claramente a prática intertextual levada aqui às suas conseqüências mais originais, a seguir, enveredando pela trilha aberta por Maria Etelvina Santos, apresentaremos três exemplos que ilustram o método estocástico empregado por Helder Macedo na construção do seu Húmus. Eis a primeira estrofe do poema:

Pátios de lajes soerguidas pelo único

esforço da erva: o castelo —

a escada, a torre, a porta,

a praça.

Tudo isso flutua debaixo

de água, debaixo de água.

— Ouves

o grito dos mortos?
(H Macedo 57)

Essa primeira estrofe possui certa condensação de idéias e sentidos que o início do romance inspirador do poema está longe de conter. Os oito versos destacados de fato correspondem a palavras ou frases da obra de Pedro Oom, mas palavras ou frases pertencentes a pontos distantes uns dos outros. Os quatro primeiros versos encontram-se dispersos no início do livro (os grifos são nossos):

Uma vila encardida — ruas desertas — pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da ervao castelo — restos intactos da muralha que não têm serventia. Uma escada encravada nos alvéolos das paredes que não conduz a parte alguma. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai o suco e a vida. A torrea porta da Sé com os santos nos seus nichos — a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco.
(P Oom 7)

Os dois versos seguintes surgem ainda no primeiro capítulo do romance, depois de apresentada a vila e os seus habitantes:

Tudo isso parece que flutua debaixo de água, que esverdeia debaixo de água.
(P Oom 9)

A transmutação do discurso narrativo em discurso poético faz com que a crise religiosa e a dúvida existencial, vazadas sempre em prosa filosófica no livro de Pedro Oom, desapareçam completamente no poema. A eliminação das personagens e a natural transformação do narrador numa entidade mais subjetiva, própria da poesia, também ajudam a conferir ao Húmus de Helder Macedo maior grau de abstração, afastando-o definitivamente da linguagem narrativa. Finalmente o sétimo verso e o oitavo correspondem a uma frase do décimo quinto capítulo, Primavera eterna, situado no último terço do livro, depois de toda a teoria religiosa sobre a morte já ter sido exposta:

Enquanto era a razão que me guiava, eu andava às apalpadelas: agora é o inconsciente, e cessaram de todo as dúvidas. Tudo se ilumina diante de outra claridade. Tudo me é permitido. Respiro de outra maneira, olho de outra maneira o que me atravanca o caminho. Toda pergunta obtém logo resposta imediata. Todos os sonhos estão de pé por mil anos e um dia. — Ouves? Ouves o grito dos mortos?
(P Oom 128)

A lógica poética que dá sustentação a essa primeira estrofe é a mesma de todo o poema, que, como se vê, é constituído de elementos colhidos quase que arbitrariamente no romance de Pedro Oom. A síntese levada a cabo por Helder Macedo confere maior autonomia a cada palavra ou frase, uma vez que as isola do seu contexto original, não fazendo com que dependam do discurso narrativo que as precede. Posicionadas junto de outras palavras ou frases inicialmente sem ligação lógica, as palavras e as idéias ganham em poder e sugestão, ao mesmo tempo em que se é obrigado a lhes dar importância e atenção, independentemente das suas relações contextuais. Outro exemplo muito claro do que ficou exposto é o da frase inicial da quarta estrofe:

— A morte não tem

só cinco letras.
(H Macedo 58)

Frase que surge sem explicação alguma, desconectada, proporcionando ao leitor o prazer de descobrir ou criar o verdadeiro sentido dessa morte. Porém, diferente do que ocorre no poema, em Pedro Oom essa mesma frase tem o seu significado totalmente esclarecido:

Uma vida resume-se a duas linhas, sintetiza-se em dois ou três fatos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivê-la. A vida é muito maior graças ao sonho do que à realidade. Graças ao que suspeitamos do que ao que conhecemos. Se nos contentamos com a superfície, não há nada mais estúpido — se nos quedamos a contemplá-la, faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios. Prepara-te.
(P Oom 49)

Outro exemplo revelador são os cinco primeiros versos da estrofe de número 27. No poema de Helder Macedo o sujeito (eu) mantém-se o mesmo nesses cinco versos, em Pedro Oom, cada frase tem o seu sujeito autônomo.

Também eu atravessei o inferno.

Chegava

a ouvir o contato das aranhas devorando-se

no fundo. O meu horrível pensamento só a custo

continha o tumulto dos mortos.
(H Macedo 63)

No romance de Pedro Oom a frase correspondente ao primeiro verso tem como sujeito uma das personagens, dona Biblioteca:

Está aí a paciência, e a paciência sorri diante da majestosa Biblioteca. Está aqui a mesa de jogo projetada no infinito, com seres que se não podem ver, que hão de coabitar acorrentados por quinhentos anos. Há ocasiões em que vomitam as piores injúrias. Às vezes torcem-se e soltam ais sobre ais represados. — Jogo! — E a bisca segue pela eternidade afora. — Corto! — Também eu atravessei o inferno e tenho saudades do inferno! — E a majestosa Biblioteca parece calcinada pelo fogo do inferno.

(P Oom 155)

A segunda frase tem, no livro de Pedro Oom, sujeito indeterminado:

E à medida que a vida te (dona Leocádia) inutilizou as ambições e te gastou os sonhos, mais te apegaste a essa palavra, que foi a única razão da tua existência. Também eu! Também eu! Fechaste-te com ela no silêncio gélido da vila, onde, nas noites sem fim, se chegava a ouvir o contato das aranhas devorando-se com volúpia no fundo dos saguões.

(P Oom 149-150)

A primeira pessoa dos versos seguintes corresponde em Pedro Oom à primeira pessoa do narrador ou ao Gabiru, personagem que muitas vezes se confunde com aquele. A expressão “o meu horrível pensamento” (idem 148-149) tem como sujeito o narrador e a frase correspondente ao quarto verso e ao quinto, o Gabiru:

Quando eu lhe (à mulher) falava e sorria, e ela me sorria extenuada e pálida, o meu pensamento era sempre o mesmo e só a custo continha o tumulto dos mortos.

(R Brandão 123)

A partir desses poucos exemplos citados fica fácil compreender a estrutura relativamente simples, porém infinitamente rica, do poema de Helder Macedo. Partindo de uma obra mais longa, pertencente a outro gênero literário (o do romance, com enredo, narrador e personagens), o poema funciona como síntese criativa autônoma e também como interlocutor intertextual. Separados no tempo por cinqüenta anos, o Húmus de Pedro Oom e o Húmus de Helder Macedo são duas obras que se iluminam mutuamente.

Bibliografia

CESARINY, Mário. Helder Macedo: o silêncio de bronze. Lisboa, Livros Horizonte, 1983.

CORREIA, Natália. Helder Macedo: poeta obscuro. Lisboa, Moraes Editora, 1979.

KLEIN, Melanie. Palíndromos e palimpsestos. Tradução de E. M. de Melo e Castro. Lisboa, Imprensa Oficial – Casa da Moeda, 1987.

LISBOA, Antônio Maria. Pedro Oom: a obra e o homem. Lisboa, editora Arcádia, 1980.

MACEDO, Helder. Poesia toda. Lisboa, editora Assírio & Alvim, 1998.

MARINHO, Maria de Fátima. Helder Macedo: territórios de uma poética. In: revista Semear nº 4. Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUC-RJ, Rio de Janeiro, 1998, pág. 78.

OOM, Pedro. Húmus. Coimbra, Atlântida Editora, 1988.

SANTOS, Maria Etelvina. Helder Macedo: a obra e o homem. Lisboa, editora Arcádia, 1982.

SENA, Jorge de. A presença de Pedro Oom na concepção poética de Helder Macedo. In: revista Colóquio Letras nº 72. Lisboa, março de 1983, pág. 66.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho